quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009


ENTREVISTA DE HANS KÜNG AO JORNAL LE MONDE
Tradução de João Tavares
Hans Küng denuncia a desesperançados católicos em relação a Bento XVI
"L'Eglise risque de devenir une secte"
«A Igreja corre o perigo de se tornar uma seita»
LE MONDE 24.02.09 15h06 • Mis à jour le 24.02.09 18h59
TÜBINGEN (BADE-WURTEMBERG) ENVOYÉS SPÉCIAUX
LE MONDE 24.02.09 15h06 • Mis à jour le 24.02.09 18h59
TÜBINGEN (BADE-WURTEMBERG) ENVOYÉS SPÉCIAUX
Silhueta alongada, de rosto quadrado, com uma mecha rebelde, Hans Küng, considerado como o maior teólogo contestador vivo, recebe-nos em sua casa, em Tubinga, na Alemanha, na sua elegante propriedade com as paredes abarrotadas de livros. Os seus, inúmeros e traduzidos em todas as línguas, estão bem à vista e em bom lugar no seu escritório. Ele está de volta aproveitando a tempestade desencadeada pela mão estendida do papa Bento XVI aos integristas católicos.
Como você analisa a decisão de Bento XVI de levantar a excomunhão de quatro bispos da corrente integrista de Mons. Lefebvre, um dos quais, Richard Williamson, é um negacionista declarado (do Holocausto)?
Isso não me surpreendeu. Desde 1977, numa entrevista a um jornal italiano, Mons. Lefebvre indica que "há cardeais que apoiam a sua corrente" e que "o novo cardeal Ratzinger prometeu intervir junto ao papa para (lhes) encontrar uma solução". Isso mostra que este assunto não é nem um problema novo nem uma surpresa. Bento XVI sempre falou muito com essas pessoas. Hoje, ele levanta a excomunhão deles, porque ele julga que agora é o momento certo. Ele pensou que poderia encontrar uma fórmula para reintegrar os cismáticos que, mesmo conservando suas convicções, poderiam dar a aparência que eles estão de acordo com o Concílio Vaticano II. Ele enganou-se redondamente.
Como você explica que o papa não mediu bem o barulho que a sua decisão iria suscitar, mesmo além das afirmações negacionistas de Richard Williamson ?
Levantar a excomunhão não foi uma falha de comunicação ou de tática, mas sim um erro de governo do Vaticano. Mesmo se o papa não conhecia as intenções negacionistas de Mons. Williamson e mesmo que ele próprio mesmo não seja anti-semita, todos sabiam que os quatro bispos em questão são anti-semitas. Neste caso, problema fundamental é a oposição ao Vaticano II e especificamente a recusa de uma nova relação com o judaísmo. Um papa alemão deveria ter considerado isso como um ponto central e se mostrar sem ambiguidades em relação ao Holocausto. Ele não soube avaliar bem o perigo. ao contrário da chancele Ângela Merkel, que reagiu firmemente.
Bento XVI sempre viveu no ambiente eclesiástico. quase não viajou. Ficou enclausurado no Vaticano - que é como o Kremlin de antigamente - onde ele fica a salvo das críticas. Por isso ele não foi capaz de prever o impacto mundial de uma tal decisão.. O secretário de estado Tarcisio Bertone, que poder ser um contrapeso, era seu subordinada na congregação para a Doutrina da Fé; é um homem de doutrina, absolutamente submisso a Bento XVI. Estamos diante de um problema de estrutura. Não existe qualquer elemento democrático neste sistema, qualquer correção. O papa foi eleito pelos conservadores, e hoje é ele que nomeia os conservadores.
Até que ponto se pode dizer que o papa ainda é fiel aos ensinamentos do Vaticano II?
Ele é fiel ao concílio à sua maneira. Ele insiste sempre, como João Paulo II, sobre a continuidade com a "tradição". Para ele, esta tradição remonta ao período medieval e helenístico. Ele, acima de tudo, não quer admitir que o Vaticano II provocou uma ruptura, por exemplo, sobre o reconhecimento da liberdade religiosa, combatida por todos os papas anteriores ao concílio.
A convicção profunda de Bento XVI é que é preciso acolher o concílio, mas que é conveniente interpretá-lo; talvez não à maneira dos lefebvristas, mas em todo o caso, no respeito à tradição e de maneira restritiva.. Ele, para dar um exemplo, sempre foi crítico da Liturgia do Vaticano II.
No fundo, Bento XVI tem uma posição ambígua sobre os textos do concílio, porque ele não se sente à vontade coma modernidade e a reforma.. Contudo, o Vaticano II representou a integração do paradigma da reforma e da modernidade na Igreja católica. Mons. Lefebvre nunca o aceitou, e seus amigos na Cúria também não. Nisso, Bento XVI tem uma certa simpatia por Mons. Lefebvre
Por outro lado, eu acho escândalos que no cinquentenário do lançamento do concílio por João XXIII (em Janeiro de 1959), o papa não tenha feito o elogio de seu predecessor, mas tenha optado por levantar a excomunhão de pessoas opostas ao concílio
Que Igreja o papa Bento XVI vai legar a seus sucessores?
Eu penso que ele defende a ideia do "pequeno rebanho". É a linha dos integristas, que avaliam que, mesmo que a Igreja perca muitos dos seus fieis, haverá no fim uma Igreja elitista, formada por "verdadeiros" católicos. É uma ilusão pensar que se pode continuar assim, sem padres, sem vocações. Esta evolução é claramente um movimento de restauração. Isso se manifesta na liturgia, mas também por atos e gestos, por exemplo quando ele diz aos protestantes que a Igreja católica é a única verdadeira Igreja.
A Igreja católica está em perigo?
A Igreja corre o perigo de se tornar uma seita. muitos católicos não esperam mais nada deste papa
Você escreveu: "Como um teórico tão devotado, amável e aberto como José Ratzinger pôde mudar até ao ponto de se tornar o Grande inquisidor romano?" Pode-nos agora explicar como?
Eu penso que o choque dos movimentos de protesto de 1968 ressuscitou o seu passado. Ratzinger era conservador. Durante o concílio, ele se abriu, mesmo se ele já era cético. Com o movimento de 68 ele voltou a posições muito conservadoras,, que ele guardou até hoje
O papa atual pode ainda corrigir esta evolução?
Quando ele me recebeu em 2005, ele fez um ato de coragem e eu cheguei a creditar sinceramente que ele iria encontrar o caminho para a reforma, mesmo que lentamente. Só que, em 4 anos, ele provou o contrário. Hoje eu me pergunto se ele ainda é capaz de fazer alguma coisa de corajoso. Para já, ele precisaria reconhecer que a Igreja está a atravessar uma profunda crise. Depois, ele poderia muito bem fazer alguma coisa em relação aos divorciados e lhes dizer que, com algumas condições eles podem ser admitidos à comunhão. Ele poderia corrigir a encíclica Humanae Vitae (que condenou, em 1968, todas as formas de contracepção), dizendo que, em certos casos, a pílula é possível. Ele poderia corrigir a sua teologia, que data do concílio de Niceia (em 325). Ele poderia dizer amanhã: "eu abulo a lei do celibato para todos os sacerdotes". Ele é muito mais poderoso que o Presidente dos Estados Unidos! Ele não precisa prestar contas à Suprema Corte. Ele poderia também convocar um novo concílio.
Um Vaticano III?
Isso poderia ajudar.Essa reunião permitiria resolver questões a que o Vaticano II não respondeu, como o celibato dos padres e o controle dos nascimentos. Também seria preciso encontrar um novo modo de eleição dos bispos, em que o povo tivesse possibilidade real de dar a sua opinião A crise atual suscitou um movimento de resistência. Muitos fiéis se recusam a voltar para o velho sistema. Até bispos se têm sentido obrigados a criticar a política di Vaticano. A hierarquia não pode ignorar isso
A sua reabilitação poderia fazer parte desses gestos fortes?
De qualquer maneira, ela seria bem mais fácil do que a reintegração dos cismáticos! Mas eu não acredito, porque Bento XVI se sente muito mais próximo aos integristas do que a pessoas com o eu, que trabalharam no concílio e o aceitaram.

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