Sr. Ministro:
No dia 8/9/2010 V. Exciª publicou no jornal O Globo um artigo intitulado Anistia, reparação e confiança, no qual discorda da decisão do Tribunal de Contas da União de equiparar as reparações dos anistiados políticos a pagamentos previdenciários, atribuindo-se competência para proceder a revisão dos valores concedidos pela Comissão Nacional de Anistia (CNA). E promete que o Ministério da Justiça vai recorrer da decisão do TCU por meio da Advocacia Geral da União, no que vem reforçar a posição já assumida publicamente pela CNA.
O artigo de V. Excia. é uma peça exemplar, não só na defesa da Lei 10559/02, que instituiu regime próprio para os processos de concessão de anistia política e de reparação de natureza explicitamente indenizatória, como no fortalecimento dos atos da CNA, criada por esta Lei, com amplos poderes para instalar os processos e julgá-los, ad referendum do Ministro da Justiça. Os milhares de anistiados do país só podem se congratular com V. Exciª.
Mas, Sr. Ministro, uma pergunta se impõe, a exigir nossa reflexão: por que será que o TCU tomou esta decisão agora? Não parece suspeito que, de repente, ele se arvore o direito de interferir numa matéria que nunca foi de sua competência? Não é coincidência que esta decisão tenha sido tomada exatamente depois dos ataques cerrados que a CNA vem sofrendo por parte da grande imprensa, tentando desqualificá-la, em detrimento das vítimas da repressão política? Não é coincidência, também, que ela se dê concomitantemente a um recuo por parte do governo, no exercício do cumprimento da Lei 10559? O que nos parece claro é que tais coincidências não são frutos do acaso, mas provocadas pelas circunstâncias que geraram o grande descontentamento existente hoje entre os anistiados políticos com relação ao andamento de seus processos. É sobre isto que gostaríamos de nos referir.
O cerco da grande imprensa
.Os jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e O Globo, e revistas como Veja são as verdadeiras cabeças da campanha desencadeada contra os atos da CNA, ora “denunciando” os valores “exorbitantes” atribuídos a esta ou aquela vítima da ditadura, ora o deferimento de processos de pessoas que, na visão deles, não deveriam receber coisa alguma. Estes órgãos de imprensa ficariam muito satisfeitos se o governo suspendesse os julgamentos ou criasse uma nova Comissão, dirigida, de preferência, por alguém da linhagem militar.
Nessa campanha, foram até criados alguns termos tendenciosos, que, por contágio, tornaram-se uso comum em toda a mídia. Um deles é o nefasto ditabranda, que insinua que a nossa ditadura foi a mais branda da América Latina, ou melhor, nem foi uma ditadura, mas apenas um endurecimento passageiro do regime militar. Estes órgãos às vezes renegam o próprio passado, quando eram obrigados a circular com páginas inteiras em branco por força da rígida censura ditatorial. Outro termo, ainda mais nefasto, é o bolsa-ditadura. Com ele procura-se induzir a opinião pública a acreditar que os perseguidos do passado não passam de aproveitadores e oportunistas do presente, de meros beneficiários das graças do poder público. No fundo, é como se as perseguições não justificassem nenhuma indenização por parte do Estado, é como se as cassações, as demissões, os exílios, as prisões, as condenações, as torturas, as mutilações, as mortes e os prejuízos nos direitos fundamentais dos cidadãos fossem legítimos. O Estado não teria nenhuma responsabilidade. Não haveria justiça a ser feita, não haveria nada a reparar. As próprias palavras de V. Excia, ao se referir ao “processo de reconstrução da confiança pública dos cidadãos em relação ao Estado que, em tempos de arbítrio, os violou em sua integridade física e psicológica” só serviriam para encobrir as supostas ilegalidades e favorecimentos que eles denunciam. Não é de estranhar, portanto, que o contágio tenha chegado às portas do TCU.
Estes órgãos de imprensa fingem desconhecer que tais indenizações foram ordenadas pela Constituição de 1988, da qual a Lei 10559 é um mero instrumento regulador. O que eles deveriam questionar, na verdade, é se a Constituição está ou não sendo cumprida, é se o governo está aplicando ou não a Lei 10559. Porque este, em princípio, é que é o papel que a imprensa costuma se atribuir: fiscalizar os atos do poder público. Mas o que eles estão fazendo é exatamente o contrário: criticam o cumprimento da Lei e desprezam o seu descumprimento. Fica, assim, unicamente para o cidadão, a tarefa de verificar se a lei está ou não sendo cumprida. E onde está a verdade?
O recuo do governo:
A verdade é que, embora tenha havido um esforço inicial dos últimos governos para cumprir a Constituição e a Lei 10559, estas, de fato, têm sido deliberada e rotineiramente desrespeitadas, contrariando o que diz a imprensa.
Não pretendemos nem pedimos que o Ministro da Justiça concorde com tal afirmação. Seria incoerente. Já basta lembrar que, se o TCU se decidisse pela revisão deste ou daquele processo, tanto ele como os ex-ministros Tarso Genro, Márcio Thomaz Bastos e outros é que se transformariam em réus, e não os anistiados por eles julgados. E não podemos aceitar que os ministros da justiça sejam julgados por estes atos. (Nesse aspecto, aliás, o artigo de V. Exciª não deixa de ser em causa própria, isto é, em defesa de si mesmo e de seus antecessores, o que, evidentemente, não invalida a sua justeza).
Além do mais, a questão do descumprimento da Lei a que nos referimos não é técnica e sim política. E aqui é que seria de se esperar que o atual Ministro da Justiça fizesse um gesto generoso e digno do aplauso público que marcaria para sempre sua passagem pelo Ministério da Justiça, dando mais um passo à frente e indo ao âmago da questão. No fundo, é isso o que todos os anistiados gostariam que ele fizesse.
Em setembro de 2009 o ex-Ministro Tarso Genro, pressionado de todos os lados pelas entidades de defesa dos interesses dos perseguidos políticos, resolveu convocar um Seminário sobre o Sistema de Reparação dos Anistiados Políticos, no salão nobre do Ministério da Justiça, para ouvir suas queixas e críticas aos processos da CNA. Prometeu comparecer, mas lá não foi. O Ministério do Planejamento ficou de enviar um representante, que também não apareceu. O da Defesa, também convidado, nem sequer se deu ao trabalho de confirmar o recebimento do convite. O seminário quase foi cancelado, com mais de 300 pessoas completamente à deriva. Não fosse a cúpula da CNA, à frente o Dr. Paulo Abrão, que lá estava, seria menos que um fracasso. O Dr. Paulo ouviu a todos, anistiados dos mais diversos setores da sociedade e numerosos advogados especializados nos processos da CNA. Mas não pôde responder à altura as numerosas queixas e críticas, até porque não tinha como. E não tinha porque o governo foi ali responsabilizado de forma fundamentada e inquestionável, pela situação caótica dos processos de anistia, e até acusado de perseguição aos anistiados e decisões injustas. Por isso, preferiu limitar-se a reafirmar a defesa dos anistiados, a fidelidade à sua causa etc, mas deixando claro que as dificuldades de sua função eram muitas. Todos puderam entender que a aquela situação calamitosa decorria de ordens superiores.
Seria de se esperar que, depois deste seminário, as coisas melhorassem. Mas o que se deu, em alguns aspectos, foi um novo retrocesso. Por que isto está acontecendo, Sr. Ministro?
Uma história triste e vergonhosa
Para que se tenha uma idéia do quadro geral dos processos de anistia, somos obrigados a montar uma pequena história. É uma síntese de várias histórias individuais, que começamos a tomar conhecimento nesse Seminário sobre Reparação, e que nunca mais paramos de ouvir. É a história de um perseguido político típico, com inúmeras prisões, torturas, mutilação, condenação, clandestinidade forçada, cerceamento do exercício do trabalho profissional e do estudo etc. Ele só vai entrar com seu pedido de reparação no início de 2004, optando, por desconhecimento mais profundo da Lei, pela parcela única. À petição anexa provas exaustivas e contundentes, inclusive certidões fornecidas pelos arquivos públicos dos estados onde esteve preso, e pela ABIN. Mas só dois anos depois ─ imagine Sr. Ministro ─, só em 2006, é que a CNA vai enviar um ofício ao STM pedido informações sobre o seu caso, pedido desnecessário, diga-se de passagem, porque provas irrefutáveis já estão no processo, inclusive certidões de condenação, inquéritos policiais e ordens de captura. Por sua vez, o STM só responde o ofício da Comissão, decorridos mais dois anos, isto é, em 2008. Depois disso, o processo entra como que em estado de hibernação, e só neste pequeno trâmite já se passaram quatro anos!
Em começos de 2009, nosso herói contrata um advogado e tomam um avião para Brasília. A situação parece absurda. O que falta para o julgamento de seu processo? Sua decepção é ainda mais completa quando consegue ler os autos. Parece que não deu um só passo, senão aquele descrito acima. Pensa até em desistir, mas mesmo este gesto é uma perda de tempo. Vê que não tem nada a fazer, e volta para casa.
Mas eis que, em novembro de 2009, seis anos depois de haver entregue a sua petição, dá uma olhada no site da CNA e toma um susto: como que milagrosamente, o processo dele consta da pauta dos que irão a julgamento na próxima sessão. Em poucos dias, já pode ler o resultado: deferido. Pela primeira vez suspira aliviado.
Envia então um e-mail à CNA, pedindo informações de quando irá receber o que lhe cabe, que ainda não sabe quanto é. Para tanto, utiliza-se do canal “fale conosco”, oferecido pelo site. Passam-se semanas, e nenhuma resposta. Resolve telefonar, mas o telefone da Comissão nunca responde. Se não desse sinal de ocupado algumas vezes, pareceria que não é para uso, mas só para decoração. Ele insiste quase duas semanas e um belo dia é como se ganhasse na loteria: uma voz lhe socorre e lhe tranqüiliza: deve esperar a comunicação oficial por carta, com a ata do julgamento, pela qual ficará sabendo quanto vai receber.
Um mês depois, nosso herói volta à carga, com o mesmo sacrifício da longa espera. Não ganhou? Pois então quer receber. Mas pedem-lhe um pouco mais de paciência, além dos seis anos e três meses já decorridos. E só no começo de abril de 2010, é que ele vai receber uma carta da Comissão. Lá está a ata do julgamento, a sentença e o valor que receberá. Fica comovido: o Estado lhe pede desculpas pelas perseguições de que foi vítima e ele é declarado oficialmente um anistiado político. Pelos anos de perseguição teria direito a receber o equivalente a 600 salários mínimos, aproximadamente, ou mais de R$300.000,00, o que daria para reconstruir sua vida miserável. Mas logo vê que não é bem assim, que isto é apenas o cálculo. Pela Lei, o valor real a receber não pode ultrapassar R$100.000,00. E se estiver de acordo, terá ainda que assinar um termo de desistência de recurso. Coincidentemente, ele já está com um recurso pronto, pois descobriu que tem direito a receber uma prestação continuada. No entanto, depois de muito refletir sobre aqueles longos seis anos de espera, resolve assinar o termo e remeter, junto à ficha cadastral e à comprovação de conta bancária para o depósito.
Amigos com experiência anterior lhe informam que ainda levará de 20 a 30 dias para o recebimento. Findo este prazo, ele irá diariamente ao Banco verificar seu saldo. E desde então começa o fenômeno comum a todos os que têm seus processos deferidos: por desconhecimento, desinformação ou ingenuidade, começam a gastar o dinheiro antes do tempo, premidos por emergências e situações pessoais desastrosas, inclusive de saúde.
Nosso herói tem duas particularidades: sua saúde, em decorrência das seqüelas das torturas sofridas nas prisões, é muito precária, e para conseguir uma aposentadoria de R$750,00 mensais, o máximo que seu tempo de recolhimento permite, terá que pagar um atrasado elevado. Ele depende de sua indenização para isso. Um dos pedidos de sua petição foi a contagem do tempo em que esteve perseguido, incapaz de exercer um trabalho legal, para efeito de aposentadoria. Teria direito, de acordo com o Parágrafo III do Art. 1º da Lei 10559. Mas não lhe concedem o benefício, simplesmente desprezam o pedido, sem nenhuma explicação. Pelo que se viu no seminário, o INSS não cumpre decisões com base nesse artigo, mandando o processo para as calendas gregas.
Depois de 60 dias de desespero, nosso herói resolve mais uma vez ligar para a CNA, e só então fica sabendo que ainda precisa esperar a confecção da portaria. E o fato é que sua portaria só vai chegar ao gabinete do Ministro da Justiça seis meses depois de sua sentença! E pior ainda: o Dr. Luiz Paulo Barreto só vai assiná-la 90 dias depois de tê-la recebido! Nesse momento, sua situação financeira já é irremediável.
Bem, mas quem já sofreu tanto, suporta sofrer mais um pouquinho. Afinal o Ministro já assinou a sua Portaria, e esta já foi publicada no Diário Oficial. O assunto está liquidado. Finalmente ele vai receber o que tem direito.
Um mês após a publicação no DOU, o dinheiro ainda não saiu. Nosso herói está confuso. Por que não lhe pagam? Por que lhe perseguem? Tudo agora depende do Ministério do Planejamento, do Dr. Paulo Bernardo. Telefona para lá e uma funcionária anuncia: “Foi bom o senhor ligar, precisamos conferir os seus dados. Seu nome completo...?” Ele não se impacienta e responde com estoicismo a tudo o que lhe perguntam. Por último, pedem-lhe que envie cópia autenticada de todos os seus documentos, além de comprovantes de endereço e de conta bancária. “Novamente?”, indigna-se. E se enfurece: “Minha senhora, eu não tenho mais processo. Ele já foi para o setor de arquivo e memória há mais de um mês. É coisa do passado. Por que estão retendo o meu dinheiro? Este é um direito constitucional.” “Bem, o senhor é quem sabe. Se não enviar os documentos, vai ficar tudo parado.” “Eu tenho pressa, preciso fazer uma cirurgia, já três vezes adiada”, insiste ele. “Então mande um laudo médico”, lhe responde a gentil funcionária. “Laudo médico? No meu processo já anexei mais de 10, e ainda querem mais um? Isto é humilhante!”
Diretores de diversas associações de anistiados ficam pasmos com aquele procedimento. É a primeira vez que o Ministério do Planejamento pede estes documentos a um anistiado. Em todo caso, é bom obedecer. Eles são poderosos. Parece que criaram uma nova rotina, isto é, um novo processo, só para o pagamento.
Imediatamente, nosso herói tira cópias de seus documentos e contas, e atende à solicitação da gentil senhora, gastando mais um dinheirinho com Sedex.
Passa-se mais um mês, e nada. Aproxima-se de um ano que seu processo foi julgado. Lembra que os fatos que lhe deram direito àquela reparação começaram a acontecer há 45, 50 anos atrás. E só para aprovarem uma lei regulamentando a Constituição levaram 13 anos! Não seria melhor esquecer tudo? Já está muito velho para esperar mais. Assim o país faz economia. Este, afinal, é um governo que ele ajudou a eleger. E que precisa ajudar um pouco mais, com sua compreensão e sua renúncia.
Apesar desses pensamentos, resolve telefonar uma última vez ao Ministério do Planejamento. Quer confirmar se seus documentos realmente chegaram. Sim, já estão lá, anexados ao processo. E o pagamento, existe alguma previsão? “Não, nenhuma.” Não será este mês? “Não acredito.” “No próximo?” “Não podemos dizer nada. Tudo é uma questão de verba. Quando houver verba, o senhor irá receber.” Claro, como poderia receber se não houvesse dinheiro? O difícil, muito difícil mesmo, é acreditar que não haja dinheiro. O próprio governo propala sua formidável disponibilidade. E assim a história se encerra, no seu próprio e irracional prolongamento. Desumana e cruel.
De prazos e cálculos
Aqueles que tiveram a sorte de entrar com suas petições no início da vigência da Lei 10559 foram atendidos de forma mais ou menos rápida. Analisei muitos processos, alguns julgados em tempo recorde: um ano, dois, três no máximo. E depois dos julgamentos todos receberam suas indenizações num prazo razoável. Os menos afortunados, com 90 dias. Outros com 60. E houve quem recebesse com apenas 30 dias. Os Ministros da Justiça sempre confiaram na CNA e assinavam as portarias tão logo os processos deferidos chegavam às suas mãos. Oito, dez, quinze dias, no máximo. Depois, todos estes prazos foram se dilatando. Finalmente, em meados de 2009, chegaram ordens superiores para que tudo fosse protelado. Os processos se acumularam. De centenas, passaram a milhares. E tudo ficou ainda mais difícil.
Mas, com protelações ou não, sejamos honestos Sr. Ministro: não há nada que justifique que os julgamentos demorem cinco, seis, sete ou mais anos. Isto é um absurdo. No mais, se houve julgamento, tem que haver pagamento. Os Ministros têm o poder de negar. Que o façam, então. Mas adiarem indeterminadamente uma simples assinatura é um gesto inaceitável. Um abuso de poder.
Estes prazos inaceitáveis parecem justificados pelo volume de processos ou pela lentidão com que as informações necessárias são prestadas pelos órgãos públicos, em particular os ligados às forças armadas. Mas não são. Como diz o Dr. Luiz Paulo Barreto em seu artigo, a Lei 10559 “criou uma dinâmica probatória simplificada, na qual o ato de anistia e reparação torna-se completo e acabado com a decisão do Ministro da Justiça.” Num regime assim, ao abrigo da lenta burocracia processual dos nossos tribunais, justifica-se que um processo leve tanto tempo para ser julgado? Justifica-se que, após o julgamento, o governo leve ainda um ano inteiro para pagar a indenização a que se tem direito? Se houvesse vontade política nada disso aconteceria. Se houvesse firmeza do governo nem o TCU meteria o dedo onde não é chamado.
Pior ainda está acontecendo com os processos de “prestação continuada”. Os não deferidos se tornaram ainda mais lentos e os deferidos estariam praticamente parados no Gabinete do Ministro da Justiça. Pelo que se sabe, antes que o TCU o faça, o próprio Ministro teria determinado uma triagem minuciosa e uma revisão dos julgamentos, antes de assinar qualquer portaria. Parece que a CNA, pela primeira vez, perdeu a relativa autonomia que possuía. Em 2009 ela já tinha recebido instruções para calcular a menor o valor das prestações continuadas. O cálculo passou a ser feito de acordo com a cotação do mercado de trabalho, embora a Constituição diga claramente que aos anistiados ficam asseguradas todas as vantagens “a que teriam direito se estivessem em serviço ativo”. Se a grande imprensa não quer isso, que se mude a Constituição. E a Constituição só pode ser mudada pelo Poder Legislativo.
Por último, é preciso falar da própria Lei 10559. Boa, no geral, ela falha num aspecto fundamental. O parágrafo 2º do Art. 5º é uma verdadeira aberração jurídica. A Lei limita as reparações em prestação única a 30 salários mínimos por ano de perseguição, para, em seguida, instituir, no § 2º, um novo limite, agora em valor monetário: “em nenhuma hipótese o valor da reparação econômica em prestação única será superior a R$100.000,00”.
Ora, quem recebeu 100 mil no ano em que a Lei passou a vigorar (31 de maio de 2001, como medida provisória, e novembro de 2002, já como Lei promulgada), quase não pôde sentir contradição entre os dois limites: 100 mil reais representavam mais de 555 salários mínimos, ou 19 anos de perseguição política, isto é, quase todo o período “anistiável”. Hoje representa apenas 196 salários mínimos, capaz de indenizar apenas 6,5 anos de perseguição. Concluindo: a ninguém é dado mais o direito de reivindicar perseguição superior a 6,5 anos, mesmo que tenha sido perseguido por 20 anos.
Por justiça, este valor deveria ser ao menos corrigido pela inflação oficial, já que não pode ser pelo salário mínimo. A Lei precisa ser igual para todos, e não está sendo. Para casos iguais estão correspondendo valores muito diferentes e para casos diferentes valores praticamente iguais. Daqui a dez anos, muitos ainda terão que pagar para fazer jus a um benefício de 100 mil. De fato, as despesas com advogados, reunião de provas, viagens e outras, poderiam reduzir este dinheiro a um valor insignificante ou até negativo. Isto para não falar da ameaça de uma inflação galopante. Ou na humilhação dos longos anos de espera, que dinheiro nenhum pode pagar. Eis uma nova versão da anistia punitiva, que Ruy Barbosa descreveu magistralmente em sua obra Anistia Inversa. Não seria o caso Sr. Ministro, do governo enviar um projeto ao Congresso revendo os critérios desse teto?
Mas a questão do valor da indenização não é o aspecto mais importante do problema. Porque não existe nada, absolutamente nada no mundo que possa compensar um único dia passado sob as garras da repressão política. A tortura é um crime de lesa-humanidade, que não tem como ser reparado. A não ser simbolicamente. Então, que assim seja. Mas, pelo menos, com o devido respeito.
Uma história de covardia
Por que chegamos a este ponto? É necessário dizer que o desrespeito à Lei, principalmente nos casos dos beneficiários de prestação continuada, provocou uma avalanche de recursos (atualmente mais de 10 mil), criando novas dificuldades para a CNA. Ao mesmo tempo, sabe-se que o governo não tem dado o apoio material e humano necessário para seu pleno funcionamento. Comenta-se que, recentemente, 100 funcionários que prestavam serviço a ela teriam sido transferidos para outros órgãos, o que não temos como comprovar, mas, pelos antecedentes, acreditamos. Além disso, o governo tem feito vista grossa às resistências ou à morosidade de diversos órgãos em prestar informações à Comissão, como o INSS e os subordinados ao Ministério da Defesa. No seminário aqui aludido, ficou patente que os órgãos das Forças Armadas sabotam quase sempre os pedidos de informação da CNA, assim como não cumprem as suas decisões. Isto é, resistem ao próprio Ministério da Justiça, ou seja, ao governo. E o que faz o governo? O presidente Lula já teria dito que não vai se atritar com os militares por causa dos casos de tortura e perseguição política do passado, postura esta que justificaria também a nefasta posição assumida pelo governo na votação da ADPF-153 no STF, recentemente.
Este é um lado do problema. O outro é a protelação pura e simples dos pagamentos. O sujeito ganha, mas não recebe. Como o dinheiro não é corrigido, tanto faz pagarem hoje como daqui a um ano. Assim, o governo economiza. E o anistiado que se dane.
Ironicamente, o atual governo nem existiria se não fossem os anistiados políticos. Pois foi a aguerrida militância de esquerda, originária dos grupos saídos das lutas de resistência à ditadura, que deram o suporte indispensável para a ascensão das forças que estão no poder. E estes velhos militantes são agora tratados como marginais suplicando as esmolas da lei. E o pior é que o governo manda protelar não por uma questão de economia. Dá a nítida impressão de que o faz com medo da grande imprensa, e para contemporizar com a extrema direita, sempre alerta. Usa a protelação para dizer que não está gastando tanto assim, como se alega. É como se estivesse a pedir desculpas a seus opositores. Não é difícil, também, sentir nisso tudo o cheiro forte e intragável do processo eleitoral.
Eis o que se pode chamar de uma política covarde, de desrespeito e menosprezo pelo passado e pela verdade. Aquilo que parece mera coincidência, na verdade não passa de uma conjunção de interesses. No fundo, o governo só pode ver com bons olhos a decisão do TCU. Tira uma carga de sua cabeça e com isso pode protelar ainda mais as decisões e os pagamentos. Mesmo que, oficialmente, o ministro da justiça não concorde. É o que está acontecendo.
Os indeferimentos
Resta-nos apenas falar dos casos de indeferimento. Muitos são justos. Sabemos que os oportunistas de plantão estão à espreita, tentando arrancar o seu pedaço. Mas existem muitos processos indeferidos injustamente. Um exemplo são aqueles em que a vítima possui poucas provas materiais das perseguições sofridas, já que foi presa e torturada de forma clandestina, sem nenhum registro oficial, tendo enfrentado graves conseqüências na sua saúde, além de um completo descompasso na sua vida profissional, com perda de emprego ou demissão forçada ou fraudada. É urgente reexaminar esses processos e instituir a oitiva de testemunhas idôneas, para não se cometer injustiças. E se o julgamento dos recursos tem que se dar basicamente pela ordem de entrada, não se pode deixar de levar em conta as prioridades. Pessoas idosas, acima de 70 anos, deveriam ter prioridade. Se um processo normal já é lento, um recurso, tido como secundário, quando será julgado? Muitos dos recorrentes certamente morrerão na fila, se não tiverem prioridade. Por falar nisso, é bom ressaltar que já não são poucos os casos de morte na fila. E até de suicídio, provocado pela desilusão e pela perda da esperança na promessa de uma recompensa que está se tornando cada vez mais maldita.
28 de outubro de 2010
Paulo Ribeiro Martins – Anistiado político
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