sexta-feira, 7 de outubro de 2011

[Carta O BERRO] Do fundo do poço. por Frei Betto - Vanderley Caixe

Vira e mexe, volta à baila o tema da descriminalização dasdrogas. Uns opinam que com o sinal verde e a legalização da venda e do consumoo narcotráfico perderia espaço e a saúde pública cuidaria melhor dosdependentes, a exemplo do que se faz em relação ao alcoolismo.
Outros alegam que a maconha deveria ser liberada, mas não asdrogas sintéticas ou estupefacientes como crack, cocaína e ópio.
Não tenho posição formada. Pergunto-me se legalizar oplantio e o comércio da maconha não seria um passo para, mais tarde, se depararcom manifestações pela legalização do tráfico e consumo de cocaína e ecstasy…
Presenciei, em Zurique, no início dos anos 90, a liberaçãodo consumo de drogas no espaço restrito da antiga estação ferroviária deLetten. Ali, sob auspícios da prefeitura, e com todo atendimento de saúde,viciados injetavam cocaína, ópio, heroína, a ponto de o local ficar conhecidocomo Parque das Agulhas. Em 1995, encerrou-se a experiência. Apesar do confinamento,houve aumento do índice de viciados e da criminalidade.
Nem sempre o debate se pergunta pelas causas da dependênciade drogas. É óbvio que não basta tratar apenas dos efeitos. Aliás, em matériade efeitos, a minha experiência com dependentes, retratada no romance “OVencedor” (Ática), convenceu-me de que recursos médicos e terapêuticos sãoimportantes, mas nada é tão imprescindível quanto o afeto familiar.
Família que não suporta o comportamento esdrúxulo eantissocial do dependente comete grave erro ao acreditar que a solução resideem interná-lo. Sem dúvida, por vezes isso se faz necessário. Por outras é ocomodismo que induz a família a se distanciar, por um período, do parenteinsuportável. Dificilmente a internação resulta, além de desintoxicação, emabstenção definitiva da droga. Uma vez fora das grades da proteção clínica, odependente retorna ao vício. Por quê?
Sou de uma geração que, na década de 1960, tinha 20 anos.Geração que injetava utopia na veia e, portanto, não se ligava em drogas. Pensoque quanto mais utopia, menos droga. O que não é possível é viver sem sonho.Quem não sonha em mudar a realidade, anseia por modificar ao menos seu próprioestado de consciência diante da realidade que lhe parece pesada e absurda.
Muitos entram na droga pela via do buraco no peito. Falta deafeto, de autoestima, de sentido na vida. Vão, pois, em busca de algo que,virtualmente, “preencha” o coração.
Assim como a porta de entrada na droga é o desamor, a desaída é obrigatoriamente o amor, o cuidado familiar, o difícil empenho detratar como normal alguém que obviamente apresenta reações e condutas anômalas.
Do fundo do poço, todo drogado clama por transcender arealidade e a normalidade nas quais se encontra. Todo drogado é um místico empotencial. Todo drogado busca o que a sabedoria das mais antigas filosofias ereligiões tanto apregoa (sem que possa ser escutada nessa sociedade dehedonismo consumista): a felicidade é um estado de espírito, e reside nosentido que se imprime à própria vida.
O viciado é tão consciente de que a felicidade se enraíza namudança do estado de consciência que, não a alcançando pela via do absoluto, seenvereda pela do absurdo. Ele sabe que sua felicidade, ainda que momentânea,depende de algo que altere a química do cérebro. Por isso, troca tudo por essemomento de “nirvana”, ainda que infrinja a lei e corra risco de vida.
Devemos, pois, nos perguntar se o debate a respeito daliberação das drogas não carece de ênfase nas causas da dependência química ede como tratá-las. Todos os místicos, de Pitágoras a Buda, de Plotino a João daCruz, de Teresa de Ávila a Thomas Merton, buscaram ansiosamente isto que umapessoa apaixonada bem conhece: experimentar o coração ser ocupado por um Outroque o incendeie e arrebate. Esta é a mais promissora das “viagens”. E tem nome:amor.
[Frei Betto é escritor, autor, em parceria com MarceloGleiser e Waldemar Falcão, de "Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entreoutros livros. http://www.freibetto.org -twitter:@freibetto.
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