Por Luiz Alberto Moniz Bandeira*
Extensão territorial, poder econômico e poder militar são três fatores que devem ser considerados para qualificar um país como potência e compreender sua posição na hierarquia entre Estados. Estes são os fatores que permitem a um Estado atuar independentemente e influir sobre outros Estados e, portanto, determinar em que condições ele se expressa como potência regional internacional. Um Estado, que dispõe de potencial econômico, força militar e extensão territorial (assumindo, por suposto, que sua população seja correspondente ao espaço que ocupa), pode tornar-se hegemônico, o líder e o guia de um sistema de alianças e acordos de variado alcance.
Para contar com todos os fatores que garantem a segurança da vitória, tanto quanto seja possível prever-se, é necessário que o Estado tenha capacidade de exercer pressão diplomática, i. e., capacidade para obter parte do que poderia ser o resultado de uma guerra vitoriosa sem necessidade de combater realmente.[1] Mesmo assim, a paz interna, como reflexo do exercício eficiente dos grupos sociais e de sua função interna hegemônica, é indispensável, se o Estado pretende ser una potência internacional. Em outras palavras, como ponderou Kart W. Deutsch, o potencial do status de poder é uma simples estimativa dos recursos materiais e humanos que podem ser usados para prever quanto êxito poderá ter um país em uma disputa contra outro país, se usa seus recursos como vantagem. [2] De acordo com Deutsch, um país tanto mais terá condições de afirmar-se como potência quanto mais extenso for e quanto mais numerosa seja sua população e os recursos que pode mobilizar para a consecução de uma política (57). Poder, pura e simplesmente, é a habilidade de um ator de prevalecer em um conflito e superar os obstáculos, se usa com vantagem seus recursos.
Com mais de 196 milhões de habitantes (em 2007), a extensão territorial de Brasil é apenas pouco menor do que a dos Estados Unidos continental, incluindo o Alaska. Soma 8.514.215 milhões de quilômetros quadrados e seu litoral se estende por 7.367 quilômetros. Tem 15.735 quilômetros (cerca de 8.000 milhas) de fronteiras, sem litígio, com todos os países da América do Sul (exceto Equador e Chile). E dentro deste vasto território, seus recursos naturais são abundantes: terras férteis para a agricultura, reservas imensas jazidas de ferro e outros minerais metálicos, urânio, biodiversidade, enormes reservas de água e recursos hidroelétricos. E, conforme a estimativa da Associação Brasileira de Geólogos de Petróleo (ABGP), os campos descobertos na Bacia de Santos, litoral do Estado de S. Paulo, contêm 33 bilhões de barris, o que quadruplica as reservas de petróleo do Brasil de 13 bilhões de barris (provados) para cerca de 46 bilhões de barris. Somente no campo de Tupi (litoral de Santos) há cerca de 5 a 8 bilhões de barris. Os dados são ainda muito imprecisos, mas de acordo com Stephanie Hanson, do Council on Foreign Relations, o volume de petróleo na camada pré-sal, que provavelmente se estende por 800 quilômetros, do Espírito Santo, norte do Rio de Janeiro, a Santa Catarina,[3] deve ser da ordem de 70 a 100 bilhões de barris, além de grande volume de gás.[4] O Produto Interno Bruto do Brasil (PIB) do Brasil, conforme a paridade do poder de compra, utilizado pelo Banco Mundial, era em 2007 da ordem de U$S 1,849 trilhão, mais de três vezes maior do que o da Argentina, estimado em U$S 526 bilhões (2005), maior do que o do Canadá, calculado em U$S 1,271 trilhão (est. 2007), do que o do México, U$S 1,353 trilhão (2007 est.), do que o da Espanha ( U$S 1,361 trilhão, est. 2007), igual ao da Itália (U$S $1,8 trilhão, 2007 est.), um pouco menor do que o da França (U$S 2,075 trilhões, 2007 est), que o da Rússia (U$S 2,097 trilhões, 2007 est.) e do Reino Unido (U$S 2,13 trilhão, 2007 est.).[5]
Não sem razão, já em 1976, ao ser interpelado, no House Foreign Affairs Commitee, se os Estados Unidos haviam elevado o Brasil ao status de potência mundial, por terem os dois países assinado um acordo de consulta, Henry Kissinger, então secretário de Estado na administração do presidente Gerald Ford (1974-1977), replicou:
"(.) This agreement does not make Brazil a world power. Brazil has a population of 100 million, vast economic resources, a very rapid rate of economic development. Brazil is becoming a world power, and it does not need our approval to become one, and it is our obligation in the conduct of foreign policy to deal with the realities that exist".[6]
Segundo Kissinger, o Brasil via o seu relacionamento com os Estados Unidos como similar a dois pilares gêmeos (twin pillars), cabendo-lhe organizar a América Latina, enquanto cabia aos Estados Unidos a mesma tarefa, na América do Norte, duas empresas trabalhando em harmonia, através de freqüente intercâmbio, e articulando seus propósitos comuns".[7]
A América Latina, a que Henry Kissinger se referiu, significava, em realidade, a América do Sul, como se pode claramente inferir da frase, porquanto a América do Norte, compreendida como o México e os países da América Central, era a área de responsabilidade dos Estados Unidos. E com argúcia Kissinger observou que a igualdade teórica da soberania de cada nação latino-americana, postulada pelo sistema interamericano, não fazia parte do vocabulário brasileiro.[8] Conforme ressaltou João Augusto de Araújo Castro, embaixador do Brasil em Washington (1971-1975)[9], o Brasil jamais considerou suas relações com os Estados Unidos como um capítulo das relações entre os Estados Unidos e a América Latina e deseja cooperar com todos os países do continente, mas não queria ser confundido com qualquer um deles, nem sequer admitia ser confundido com sua totalidade[10]. Com efeito, o Brasil não somente não queria ser confundido com a América Latina, em geral, como não aceitava tal conceito então generalizado e adotado pelas instituições multilaterais, para enquadrar toda uma região onde os diversos Estados apresentavam enormes disparidades e assimetrias. O Brasil não queria ser diluído em um conjunto de países, dos quais se diferenciava pela sua dimensão territorial, demográfica e econômica. Havia, concretamente, uma hierarquia de poderes, em que o Brasil se sobressaía, dado que, ao separar-se de Portugal, não se desintegrara, como aconteceu com a América espanhola, e manteve, sem ruptura da ordem política, a vasta extensão do seu território.
A percepção de Kissinger quanto ao papel que o Brasil desempenhava ou pretendia desempenhar tinha fundamento histórico. Desde a segunda metade do século XIX, o Brasil configurou uma potência regional. Possuía um aparelho burocrático-militar capaz de defender e mesmo impor, tanto interna quanto externamente, os interesses de sua elite dirigente, devido ao fato de que não era um simples sucessor do Estado português. Era o próprio Estado português, que se trasladara para a América do Sul, ajustara-se às condições econômicas e amoldara-se à estrutura social da colônia, mas conservara sua contextura institucional, assentada no dogma da soberania una e indivisível da Coroa, a hierarquia, as leis civis, os métodos administrativos, o estilo político, o instrumental bélico e diplomático, com experiência internacional, e o vezo de potência. Daí porque, em 1854, o diplomata Martin Maillefer, ministro plenipotenciário da França em Montevidéu, chamou o Brasil de "Rússia tropical", que tinha "a vantagem da organização e perseverança em meio dos Estados turbulentos e mal constituídos da América do Sul" [11].
Após a Guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai, que comprometeu gravemente as finanças do Brasil, a Argentina consolidou-se como Estado nacional e, embora as economias dos dois países não competissem e até mesmo se complementassem, suas relações caracterizaram-se cada vez mais por forte rivalidade, gerando tensões e graves crises, entremeadas com esforços de entendimento e de cooperação, ao longo de toda a primeira metade do século XX. A partir do final da Segunda Guerra Mundial, com a implantação da indústria pesada, e particularmente com a implantação da siderúrgica, o desenvolvimento do Brasil avantajou-se, enquanto a economia da Argentina, assentada sobre a agropecuária, continuou a depender das exportações de carne e cereais e importações de bens de capital, cada vez mais caras, para sustentar uma indústria com características leves, de bens de consumo. Assim, expansão econômica do Brasil, a partir dos governos dos presidentes Getúlio Vargas (1951-1954) e Juscelino Kubitschek (1956-1961), tomou enorme impulso e, após a crise na primeira metade dos anos 1960, seu PIB desde 1968 passou a crescer a taxas de 9%, 10% e 11% a.a., contrastando com a relativa estagnação da Argentina, o que aumentou o desequilíbrio de poderes cada vez mais na América do Sul. Um século depois, pôde então o Brasil restabelecer a hegemonia que mantivera na Bacia do Prata, até 1876, quando retirou as tropas do Paraguai, derrotado na Guerra da Tríplice Aliança.
América do Sul como conceito geopolítico
O conceito de América do Sul, como conceito geopolítico, e não o conceito de América Latina, um conceito étnico, muito genérico, e sem consistência com seus reais interesses econômicos, políticos e geopolíticos, foi que sempre pautou, objetivamente, a política exterior do Brasil, e até a metade do século XX suas atenções concentraram-se, sobretudo, na região do Rio da Prata, ou seja, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, que conformavam sua vizinhança e com os quais havia fronteiras vivas comuns, i. e, fronteiras habitadas. O entendimento do Brasil era de que havia duas Américas, distintas não tanto por suas origens étnicas ou mesmo diferença de idiomas, mas, principalmente, pela geografia, com as implicações geopolíticas, e esse foi o parâmetro pelo qual se orientou a política exterior do Brasil, que no curso do século XIX se absteve de qualquer envolvimento na América do Norte, Central e Caribe, enquanto resguardava a América do Sul como sua esfera de influência.
George Hegel, nas aulas sobre a filosofia da história mundial, ditadas na década de 1820, salientou o contraste entre a América do Sul, onde o catolicismo predominava, e a América do Norte, uma terra de seitas, protestante, onde o comércio constituía o principal princípio, um princípio muito simples, ainda que não fosse tão firme como na Inglaterra[12]. E, ao dizer que a América era a terra do futuro, previu uma "contenda entre a do Norte e a América do Sul, em que a importância da História Universal deveria manifestar-se". [13] Não explicitou que tipo de contenda. Mas, na sua exposição, o México figurava como um país à parte, tanto da América do Norte, entendida como os Estados Unidos, e a América do Sul, que compreendia o Brasil e os países de língua espanhola. Também o escritor francês Michel Chevalier na introdução ao livro Lettres sur l'Amérique du Nord[14], publicado em 1837, fez uma observação semelhante à de Hegel, ao comparar a América do Sul com a Europa meridional, católica e latina, e a América do Norte, que pertencia a una população protestante e anglo-saxônica. Tudo indica, porém, que o conceito de América Latina, integrando o México e demais países da América Central, foi usado pela primeira vez pelo intelectual e político chileno Francisco Bilbao Barquín (1823-1865), em conferência pronunciada em Paris em 24 de junho de 1856.
Alguns meses depois, em 2 de setembro do mesmo ano, o escritor e diplomata colombiano José María Torres Caicedo (1830-1889), em um poema intitulado "Las dos Américas", referiu-se a "la raza de la América Latina, al frente tiene la sajona raza, enemiga mortal que ya amenaza su libertad destruir y su pendón", e acrescentou que "la América del Sur está llamada a defender la libertad genuina, la nueva idea, la moral divina, la santa ley de amor y caridad", pois "el mundo yace entre tinieblas hondas:- en Europa domina el despotismo de América en el Norte, el egoismo, sed de oro e hipócrita piedad". Posteriormente, em 1861, Torres Caicedo lançou as "Bases para la formación de una Liga Latinoamericana". E, no mesmo ano, em artigo publicado pela Revue des Races Latines, L. M. Tisserand denominou como l'Amérique Latine o que até então se conhecia, na Europa, como Nouveau Monde ou Amérique du Sud ou républiques hispanoaméricaines. O abade Emmanuel Domenech (1825-1903), autor de Journal d'un Missionnaire au Texas et au Mexique 1846-1852, consolidou o conceito de América Latina, como "le Mexique, l'Amérique Centrale et l'Amérique du Sud".
O conceito de América Latina, desenvolvido para demonstrar as diferenças, contrastes e mesmo antagonismos com a América do Norte, tal como Chevalier e Tisserand expressaram e difundiram, passou a integrar o pan-latinismo, ideal que encapava as pretensões imperialistas da França, sob o reinado de Louis Bonaparte, Napoleão III, e foi manipulado para legitimar a intervenção da França no México (janeiro de 1862 - março de 1867), onde fora entronizado o arquiduque Ferdinand Maximilian, irmão do imperador da Áustria. O propósito de Napoleão III era construir um Império Latino, em oposição à Grã-Bretanha, e necessitava estabelecer um elo de identidade com a Ibero-América a fim de legitimar sua pretensão. Mas aí o conceito de América Latina, integrando o pan-latinismo conforme difundiram Chevalier, então conselheiro de Estado de Napoleão III, e Tisserand, já se distanciava da formulação de Torres Caicedo, que lhe dera um caráter defensivo frente à expansão dos Estados Unidos, e de Francisco Bilbao, em cuja obra La América en Peligro, de 1862, não somente denunciou o despotismo europeu e sua política de expansão como proclamou a necessidade de defender o México contra a França.
A América do Sul na política exterior do Brasil
Como salientou o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em sua obra "Quinhentos anos de periferia", a América do Sul é a "circunstância inevitável, histórica e geográfica do Estado e da sociedade brasileira".[15] William H. Seward, secretário de Estado do presidente Abraham Lincoln, convidou o Brasil para intervir no México, juntamente com os Estados Unidos. Dentro América do Sul, porém, o interesse fundamental do Brasil, desde os tempos da colonização, cingiu-se, particularmente, aos países da Bacia do Prata - Argentina, Uruguai, Paraguai e, de certo modo, Bolívia, e o que amplificou ainda mais a importância geopolítica da região, primeiro para Portugal, durante a colonização, e depois para o Brasil, foi o fato de que o abastecimento de Mato Grosso, Goiás e parte de S. Paulo dependia, quase que totalmente, da navegação fluvial.[16] O bloqueio da livre navegação através dos rios da Bacia do Prata configurava casus belli para o governo imperial.
Com as repúblicas do Pacífico, separadas por florestas e pela cordilheira dos Andes, as relações do Brasil nunca adquiriram maior peso e densidade, até a primeira metade do século XX. O interesse primordial do Brasil consistiu em buscar solução para as questões de limites e de navegação fluvial, através do Amazonas,[17] e daí as missões de Duarte da Ponte Ribeiro (1851), Miguel Maria Lisboa (1853), João da Costa Rego Monteiro, Felipe Lopes Neto , Joaquim Maria Nascentes de Azambuja (1866-1867)[18], enviadas às repúblicas do Pacífico (Peru, Equador, Colômbia e Venezuela). A doutrina do uti possidetis serviu de base para a demarcação das fronteiras, com a prevalência da idéia da nacionalidade, que conferiu à política brasileira coerência, racionalidade e continuidade, como Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Buenos salientaram[19]. E o que o Brasil tratou de assegurar foi sua soberania sobre a Amazônia, antes de abrir o rio à navegação internacional, e evitar que as repúblicas do Pacífico fossem induzidas pelos Estados Unidos a atacá-lo ao norte, aproveitando seu envolvimento na guerra contra o Paraguai (1864-1870).[20]
José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco, quando ocupou o cargo de ministro das Relações Exteriores (1903-1912), buscou consolidar as fronteiras do Brasil, com todos os seus vizinhos, e sua política exterior pautou-se por diretrizes similares às do tempo da monarquia (1822-1889), ao considerar o continente uma espécie de condomínio, em que o Brasil exerceria livremente sua influência sobre a América do Sul, enquanto as Américas do Norte e Central, bem como o Caribe teriam nos Estados Unidos seu centro de gravitação. Por esta razão, embora o imperador D. Pedro II não aprovasse, pessoalmente, a iniciativa de Napoleão III,[21] ocupando o México, seu governo não aceitou o convite, alegando que não tinha maior interesse na questão. [22] Essa atitude do governo de D. Pedro II deveu-se ao fato de que o Brasil considerava o México fora de sua esfera de preocupação e nunca aspirou a ter qualquer interferência nos países daquela região, considerada como pertencente à órbita dos de influência dos Estados Unidos.
Ao tempo da república, quando, em 1903, Panamá se separou da Colômbia, com o apoio dos Estados Unidos, Rio Branco, não obstante lamentar o acontecimento, não protestou, e somente reconheceu a nova república de acordo com a Argentina e o Chile, a fim de manter a unidade dos três países, com os quais pretendia estabelecer um acordo diplomático, conhecido como ABC (Argentina, Brasil e Chile). Em 1908, porém, ele reagiu energicamente contra a atitude dos Estados Unidos, que estava a favorecer o Peru no litígio sobre os territórios de Purus e Juruá, afirmando o "direito nosso (brasileiro) de atuar politicamente nesta parte sem ter que pedir licença ou dar explicações" ao governo americano, que, segundo suas palavras, não devia se envolver "para ajudar nossos desafetos, nas questões em que estamos empenhados"[23]. E um ano depois, 1909, ameaçou romper as relações com os Estados Unidos, se o presidente William Howard Taft executasse o ultimatum dado ao Chile para pagar dentro de dez dias o montante de US$ 1 milhão, reclamado pela empresa norte-americana Alsop & Co.[24] Entretanto, em 1910, Rio Branco não atendeu a um apelo da Nicarágua para que a ajudasse a impedir que um barco de guerra americano continuasse a apoiar uma revolução que surgia naquele país[25]. Não tinha interesse na questão. E somente, unido à Argentina e ao Chile, configurando o bloco conhecido como ABC, atuou como mediador para evitar uma guerra entre o México e os Estados Unidos, cujos soldados haviam ocupado a cidade portuária de Vera Cruz, a pretexto de capturar um carregamento de armas alemãs, transportado pelo navio Ypiranga, da Companhia Hamburg-Süd.[26] Em 1927, no entanto, o diplomata Ronald de Carvalho, em "Relatório Reservado sobra a Política Exterior do Brasil e a dos Países da América do Sul", organizado por ordem do então chanceler Octavio Mangabeira, deixou bem clara a pretensão do Brasil, ao assinalar, após definir vários objetivos a cumprir, que "voltaremos a ocupar, em virtude do crescimento natural de nossa população e do desenvolvimento das nossas riquezas, o lugar que nos cabe na América do Sul", ou, sem outras palavras, a preeminência que tivera durante o século XIX.[27]
Oswaldo Aranha, quando embaixador do Brasil em Washington, tomou em 1935 atitude semelhante à do Barão do Rio Branco, em face da intromissão dos Estados Unidos nos assuntos dos países com os países vizinhos. Advertiu o Secretário de Estado, Summer Welles, de que "nada explicava o nosso (brasileiro) apoio aos Estados Unidos em suas questões na América Central, sem atitude recíproca de apoio ao Brasil na América do Sul"[28]. E, posteriormente, na condição de ministro das Relações Exteriores do presidente Getúlio Vargas (1930-1945), assinou, com Enrique Ruiz-Guiñazú, chanceler da Argentina, o Tratado de 21 de novembro de 1941, cujo objetivo era "estabelecer, de forma progressiva, um regime de intercâmbio livre, que permitisse chegar a uma união aduaneira /./, aberta à adesão dos países limítrofes", i. e., aberta à adesão dos países da América do Sul. A Argentina configurava-se cada vez mais importante parceiro comercial do Brasil, escoadouro natural para seus produtos agrícolas e manufaturas. E o presidente Getúlio Vargas, durante a Conferência do Rio de Janeiro, após a qual rompeu as relações com os países do Eixo, não quis constrangê-la ou que o Brasil dela se afastasse, porquanto considerava a amizade entre os dois países "parte integrante de um programa de governo" . [29]
O Tratado de 1941, para estabelecimento da união aduaneira, não se efetivou devido ao ataque do Japão à base americana de Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, envolvendo diretamente o hemisfério na Segunda Guerra Mundial, após a qual começou a ganhar força o conceito de América Latina, que as organizações multilaterais passaram a utilizar, após a Segunda Guerra Mundial, para designar a região, ou seja, todos os países abaixo do Rio Grande. Entretanto, mesmo quando o Brasil se referia à América Latina, o que estava subjacente era a idéia de América do Sul, da qual assumiu abertamente a liderança, quando o presidente Juscelino Kubitschek lançou, em 1958, a Operação Pan-americana, visando a reformular os termos do relacionamento com os Estados Unidos. "Verifico que no Brasil - e creio que nos demais países do continente - amadureceu a consciência de que não convém mais formarmos um mero conjunto coral, uma retaguarda incaracterística, um simples fundo de quadro" - declarou Kubitschek.[30] Naquelas condições, o continente significava, sobretudo, o continente sul-americano. E o formidável impulso que tomara o processo de industrialização do Brasil, em conseqüência da implantação do parque siderúrgico de Volta Redonda, foi que adensou e robusteceu sua pretensão de assumir sua liderança vis-à-vis dos Estados Unidos. Seu papel revestiu-se da maior importância, na primeira metade dos anos 60, ao defender os princípios de não-intervenção e auto-determinação dos povos, concorrendo decisivamente para impedir que os Estados Unidos conseguissem o apoio da Organização dos Estados Americano (OEA) ao seu propósito de intervir militarmente em Cuba e derrocar o regime instituído por Fidel Castro. Tratava-se de uma questão fora de sua órbita, a América do Sul, mas envolvia a OEA e, conseqüentemente, todo o hemisfério. Em 1965, porém, o Brasil rompeu sua tradição de não intervir diretamente em questões da América Central e do Caribe, atendeu à solicitação de Washington e enviou um contingente militar, na condição de força interamericana de paz, para coadjuvar na ocupação da República Dominicana, após a invasão ordenada pelo presidente Lyndon Johnson.
O Brasil e os países da região amazônica
Com a intensificação do seu desenvolvimento industrial, o Brasil voltou-se mais e mais para os países da região amazônica, ou seja, para a Bolívia, Peru, Equador, Venezuela, Colômbia, Suriname e Guiana, cuja massa demográfica, no conjunto, representava por volta da primeira metade dos anos 80 do século XX um mercado da ordem de 87 milhões de habitantes, o equivalente a 61% da população brasileira, espalhando-se até o Oceano Pacífico e o Caribe. Era necessário abrir mercados para as suas manufaturas e o comércio da região amazônica com as repúblicas do Pacífico saltou de US$ 173 milhões, em 1972, para US$ 2,3 bilhões em 1982.[31] E seu fomento, visando a integração e unificação da América do Sul, requeria o desenvolvimento dessa imensa região, a Amazônia, que separava os mercados às margens do Pacífico e do Caribe dos centros industriais do Brasil, situados no litoral do Atlântico. O desenvolvimento da Amazônia dependia, entretanto, da cooperação com os países vizinhos, porquanto sete das dez fronteiras internacionais do Brasil localizavam-se quase integralmente naquela região, somando 12.114 km, o que representava cerca de 80% do total de sua fronteira terrestre. Assim, com o propósito de incrementar o desenvolvimento trans-fronteiriço, o Itamaraty, durante o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) empreendeu as negociações, a cargo do embaixador Rubens Ricupero, para a celebração, em 3 de julho de 1978, do Tratado de Cooperação Amazônica. O que inspirou a negociação desse Tratado, com características similares ao Tratado da Bacia do Prata, foi possibilitar sua ocupação de forma racional e evitar que potências estranhas à região se introduzissem na Amazônia, sob qualquer pretexto. Essa preocupação levou o presidente João Batista Figueiredo a evitar que os Estados Unidos, em 1981, interviessem no Suriname, conforme o presidente Ronald Reagan pretendera, para depor o governo de Desiré Delano (Desi) Bouterse, sob a alegação de que ele estava a acercar-se politicamente de Cuba.[32] Assumiu a tarefa de resolver o problema. E conseguiu-o.
Mercosul versus ALCA
A questão Mercosul/ALCA tornou-se destarte o principal ponto das divergências entre o Brasil e os Estados Unidos, por envolver profundas contradições, nas quais interesses econômicos, políticos e estratégicos se entrelaçavam. A ALCA não convinha aos interesses do Brasil, que não se dispunha a permitir, como o fez a Argentina, que seu parque industrial se desmantelasse, se transformasse em sucata, sob nova e devastadora redução de tarifas, nem a suportar crescentes saldos negativos na balança comercial. O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que fora um dos encarregados das negociações dos acordos de integração Brasil-Argentina, em 1986/1987, quando ainda era o conselheiro e chefe da Divisão Econômica do Itamarati, denunciou a ALCA como parte da estratégia de manutenção da hegemonia política e econômica dos Estados Unidos, "que realizariam seu desígnio histórico de incorporação subordinada da América Latina a seu território econômico e a sua área de influência político-militar"[33], e insistiu em que o governo brasileiro devia abandonar os acordos para sua implementação. "A ALCA levará ao desaparecimento do Mercosul" - advertiu[34].
Grande parte do empresariado brasileiro também receava as conseqüências da ALCA, cuja implementação acarretaria sérios riscos para a indústria nacional. E o presidente Fernando Henrique Cardoso, em meio das crescentes dificuldades geradas, dentro do Mercosul, pela desvalorização, em 1999, da moeda brasileira, o real, reavivou o conceito de América do Sul, que o projeto da ALCSA consubstanciava e fora eclipsado durante seu primeiro mandato (1995-1999). A ampliação do comércio com os países da América do Sul implicava, porém, uma série de projetos e o presidente Fernando Henrique Cardoso convocou uma reunião de cúpula dos chefes de Estados da América do Sul, realizada em Brasília, durante os dias 31 de agosto e 1° de setembro de 2000, com o objetivo de discutir a integração regional, notadamente as interconexões energética e viária. O plano teria financiamento do BID e da CAF (Corporación Andina de Fomento) e México mostrou-se contrariado por não ter sido convidado, imaginando que se tratava de manobra com intenção de isolá-lo. Fernando Henrique Cardoso mandou fazer ver ao governo mexicano que o plano de interconexões não poderia chegar à América do Norte, não havia como, de modo que por esse motivo a presença do México não havia sido considerada. Para dirimir quaisquer dúvidas nesse sentido, convidou para a reunião o Ministro das Relações Exteriores do México, Jorge G. Castañeda, na qualidade de observador. Mas, evidentemente, a desculpa era apenas meia-verdade, pois não podia explicar os objetivos políticos implícitos na convocatória da cúpula Brasília.
Estes objetivos se evidenciaram em artigo publicado na imprensa, na qual Fernando Henrique Cardoso, antes da reunião, definiu o acontecimento como de "reafirmação da identidade própria da América do Sul como região", onde a democracia e a paz abriam a perspectiva da integração cada vez mais intensa entre países que mantinham uma relação de vizinhança".[35] E ressaltou:
"A vocação da América do Sul é a de ser um espaço econômico integrado, um mercado ampliado pela redução ou eliminação das dificuldades e obstáculos ao comércio, e pelo aperfeiçoamento das conexões físicas em transportes e comunicações" .[36]
Não se tratava, portanto, de América Latina, mas da América do Sul, uma região geograficamente definida, reconhecida pelos presidentes, no Comunicado Conjunto, como uma região com características específicas que a distinguiam no cenário internacional e que as suas peculiaridades e a contigüidade geográficas criavam uma agenda comum de desafios e oportunidades. Sua coesão constituía, também, elemento essencial a uma inserção mais favorável na economia mundial, de forma que pudesse converter a globalização em meio eficaz para ampliar as oportunidades de crescimento e desenvolvimento da região e melhorar de forma sustentada e eqüitativa os seus padrões de bem-estar social, enfrentando os efeitos desiguais gerados para diferentes grupos de países, vis-à-vis sobretudo da América do Norte.
A Cúpula de Brasília teve um caráter estratégico e avançou a possibilidade de integração, não apenas física, econômica e comercial, mas igualmente política, como o presidente Fernando Henrique Cardoso insinuou, ao dizer que era "o momento de reafirmação da identidade própria da América do Sul como região onde a democracia e a paz abrem a perspectiva de uma integração cada vez mais intensa entre países que convivem em um mesmo espaço de vizinhança". E a afirmação dessa "identidade própria", diferenciada, por conseguinte, da América do Norte, era o que preocupava Washington, conforme Kissinger exprimiu em sua obra Does America Need a Foreign Policy?[37] Mas a integração política passava necessariamente pela perspectiva de integração do espaço econômico da América do Sul, mediante o entendimento entre "o Mercosul ampliado e a Comunidade Andina (CAN),[38] com a aproximação crescente da Guiana e do Suriname", conforme o presidente Fernando Henrique Cardoso, apontou, salientando:
"Um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina será a espinha dorsal da América do Sul como espaço econômico ampliado. Deve, portanto, ser visto como um objetivo político prioritário". [39]
Por proposta do Brasil, reconheceu-se a necessidade de implementação da integração da América do Sul, a partir da formação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), iniciada em 1993, ao tempo do governo do presidente Itamar Franco, que tinha como chanceler o embaixador Celso Amorim. E a proposta de integração regional não se limitou aos aspectos comerciais. Houve acordo sobre a necessidade de desenvolvimento de uma Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional da América do Sul (IIRSA), que modernizasse as relações e potencializasse a proximidade sul-americana, rompendo os obstáculos fronteiriços e formando um espaço ampliado através de obras e articulações nas áreas de transportes, energia e comunicações.
O objetivo político prioritário, na proposta de integração do espaço econômico da América do Sul, evidenciou-se ainda mais quando Fernando Henrique Cardoso declarou que o "Mercosul é mais que um mercado, o Mercosul é, para o Brasil, um destino" - disse o presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001, acrescentando que a ALCA era "uma opção", à qual poderia aderir ou não. [40] E esta sua frase, exprimindo a continuidade essencial da política exterior do Brasil, repercutiu nos Estados Unidos [41], o que levou Henry Kissinger a constatar que o Mercosul tendia a apresentar as mesmas tendências manifestadas na União Européia, que buscava definir uma identidade política européia não apenas distinta dos Estados Unidos, mas em manifesta oposição aos Estados Unidos[42]. "Especialmente no Brasil, há lideres atraídos pela perspectiva de uma América Latina politicamente unificada confrontando os Estados Unidos e o NAFTA" - Kissinger ressaltou[43]. Segundo observou, enquanto a ALCA era concebida como simples área de livre comércio, o Mercosul era uma união aduaneira, trans-fronteiriça, que teria, por sua natureza, tarifas mais elevadas para o mundo (tarifa externa comum) que entre os estados associados, pretendendo evoluir para um mercado comum, e isto não convinha, porque, provavelmente, afirmaria a identidade latino-americana (sic) como separada e, se necessário, oposta aos Estados Unidos e à NAFTA. "(.) Tudo isso tem criado um potencial debate entre Brasil e os Estados Unidos sobre o futuro do Cone Sul" - Kissinger reconheceu[44]. Com efeito, a diplomacia brasileira tornou a integração da América do Sul, a afirmação de sua identidade própria, a condição prévia para qualquer esforço de integração hemisférica, tal como o que os Estados Unidos estavam a propor, com o projeto da ALCA.[45]
Conflitos na América do Sul
O Brasil estava a exercer de fato a liderança da América do Sul, aceita consensualmente pelos demais governos da região, dado seu enorme peso econômico, político e estratégico, sem pretensões de hegemonia, respeitando as particularidades de cada povo. E a Segunda Reunião de Presidentes da América do Sul realizou-se em Guayaquil, Equador, entre 26 e 27 de julho de 2002, quando foi aprovado o "Consenso de Guayaquil sobre Integração, Segurança e Infra-Estrutura para o Desenvolvimento", manifestando o propósito de construir "um futuro de convivência fecunda e pacífica, de permanente cooperação" e declarando "a América do Sul como Zona de Paz e Cooperação". A turbulência social, política e militar nos países andinos dificultava, no entanto, a consecução de tal objetivo e preocupava o Brasil. Em 26 de janeiro de 1995, o conflito armado entre tropas do Equador e do Peru, na fronteira litigiosa em torno do rio Cenepa, perturbara a paz da região. O presidente Fernando Henrique Cardoso atuou no sentido de obter o cessar-fogo, levando os dois países, depois de esporádicos combates, a firmarem um acordo, em Brasília, sob os auspícios dos quatro Estados garantes do Protocolo do Rio de Janeiro, de 1942 - Argentina, Brasil, Chile e Estados Unidos. O Brasil exerceu a liderança no processo de Paz entre o Equador e o Peru e o Exército brasileiro, na Missão de Observadores Militares Equador-Peru (MOMEP), fiscalizou na região do rio Cenepa, fronteira entre os dois países, o cumprimento do acordo.
O Brasil também interveio, diplomaticamente, para evitar que a crise política, no Paraguai, em abril de 1996, resultasse em um golpe militar, depois que parlamentares, vinculados ao general Lino Oviedo, votaram contra o projeto de lei para construir uma segunda ponte entre o Paraguai e o Brasil, o que impediu as empresas do presidente Juan Carlos Wasmosy de obterem a concessão das obras. Wasmosy decidiu então passá-lo para a reserva e Oviedo[46], rebelado, entrincheirou-se em sua unidade, ameaçando derramar sangue se a medida não fosse revogada. A crise somente não culminou com a quebra da legalidade constitucional, devido à interferência dos embaixadores do Mercosul (Argentina, Brasil e Uruguai), dos Estados Unidos e do próprio secretário executivo da OEA, César Gaviria, que negociaram um acordo, mediante ameaças de boicote e isolamento econômico e político do Paraguai, bem como do congelamento de sua participação no Mercosul e outras sanções punitivas: Oviedo não foi preso e apresentou voluntariamente o pedido de passar para a reserva.
De qualquer maneira, o Brasil não estava disposto a permitir um golpe de estado no Paraguai e contaria com o respaldo da Argentina e do Uruguai, dado que a ruptura da democracia política seria intolerável dentro do Mercosul, bem como em termos do Grupo do Rio e da nova concertação no hemisfério. O compromisso com a democracia, ou seja, a chamada "cláusula democrática" do Mercosul, estava implícito no Tratado de Assunção, tanto que Brasil e Argentina, desde a Declaração de Iguaçu, em novembro de 1985, nunca cessaram de reiterar a adesão aos princípios democráticos, como fundamento da cooperação e da integração, não apenas em termos bilaterais, mas também com respeito aos demais países da América do Sul. O Foro de Consulta e Concertação Política do Mercosul (FCCP) deu grande ênfase à implementação da chamada "cláusula democrática", o que levou à adoção do Protocolo de Ushuaia pelos países do Mercosul e Bolívia e Chile. A preservação da democracia no Paraguai continuou, porém, a constituir a grande preocupação do Brasil. Pouco depois de contornada a crise, Fernando Henrique Cardoso, em junho de 1996, visitou Assunção, com a intenção de reiterar o respaldo à ordem constitucional, e no mesmo ano os presidentes dos quatro países integrantes do Mercosul assinaram uma declaração, assumindo o compromisso de consultarem-se e aplicarem medidas punitivas, dentro do espaço normativo do bloco, em caso de ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática em algum estado membro.
A débil democracia instalada no Paraguai, após a queda da ditadura do general Alfredo Stroessner, em 1989, continuou, porém, sob a ameaça de colapso, ao intensificar-se a luta pelo poder dentro do próprio Partido Colorado, que ainda controlava mais de 80% do aparelho do Estado. Condenado a 10 anos de prisão, por chefiar a rebelião militar de 1996, o general Lino Oviedo não pôde concorrer à sucessão do presidente Juan Carlos Wasmosy, mas Raúl Cubas, que o substituiu como candidato do Partido Colorado, venceu a eleição, com o slogan "Cubas no governo e Oviedo no poder", e concedeu-lhe indulto, cinco dias depois de assumir o governo, em agosto de 1998. O assassinato de Luís Carlos Argaña, o principal adversário do presidente Raúl Cubas, que se opusera à libertação de Oviedo, desencadeou a grave crise política, em meio de choques de rua, e mais uma vez os chefes de governo do Brasil e da Argentina tiveram de intervir, ameaçando isolar o Paraguai econômica e politicamente e afastá-lo do Mercosul, de conformidade com a cláusula democrática do Tratado de Assunção caso um golpe de estado se consumasse. Essa advertência Raúl Cubas ouviu diretamente de Fernando Henrique Cardoso, que o aconselhou a renunciar à presidência, antes de que a crise se agravasse e produzisse a ruptura da legalidade, e percebeu que não tinha condições de resistir, dado que o Brasil absorvia cerca 30% das exportações dos produtos paraguaios, como algodão e soja, e essa dependência chegava a atingir 70%, considerando o total estimado de suas reexportações. Assim, em 28 de março de 1999, véspera da decisão do Senado sobre o impeachment, Cubas Grau renunciou à presidência do Paraguai e asilou-se no Brasil, após Oviedo partir para a Argentina, onde o presidente Carlos Ménem lhe deu refúgio. Entretanto, outro intento de golpe ocorreu, na madrugada de 18 para 19 de maio de 2000, quando integrantes do Primeiro Corpo do Exército, tendo como epicentro a Primeira Divisão de Cavalaria, e de Polícia Nacional, promoveram a Operación Aratirí (raio no idioma guarani), questionando a legitimidade do presidente Luís González Macchi e invocando o direito constitucional à rebelião. Os insurgentes, após ocupar as instalações de alguns meios de comunicação, pretenderam dirigir-se para o Congresso, porém a Marinha e a Força Aérea declararam-se leais ao governo e sufocaram o levante, sem encontrar resistência.
A guerra civil na Colômbia constituía outro foco de instabilidade, a preocupar o Brasil, devido, sobretudo, à possibilidade de uma intervenção militar, efetuada ou articulada pelos Estados Unidos. O Plano Colômbia, lançado pelo presidente Bill Clinton um dia antes da Reunião dos Presidentes da América do Sul, em Brasília, preocupou o governo brasileiro, uma vez que equacionava o conflito exclusivamente em sua dimensão armada, destinando mais de US$ 1,2 bilhão - cerca de 80% dos US$ 1,3 bilhão prometidos pelos EUA - à compra de material bélico, inclusive aviões, 30 helicópteros tipo Black Hawk e 33 tipo Huey[47], pelo Exército colombiano, e apenas US$ 238 milhões à promoção dos direitos humanos e ao reforço da democracia e do sistema judicial. Ele fora concebido como uma estratégia de guerra, e tudo indicava que os Estados Unidos repetiriam a tática usada em Kosovo, bombardeando intensamente as regiões dominadas pelas Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) e o Ejército de Libertación Nacional (ELN), juntamente com a aspersão de agentes biológicos sobre os cultivos de coca, dado que uma intervenção por terra nas províncias de Caquetá, Putumayo, na Amazônia colombiana, custaria muitas perdas de vida.
O Brasil temeu o impacto que a execução do Plano Colômbia produziria sobre seu território, levando guerrilheiros ou militares colombianos a invadi-lo, e receou que fungos (Fusarium orysporum) ou outras armas químicas e biológicas, eventualmente empregadas pelos Estados Unidos, para destruir as plantações de coca, contaminassem os rios da Amazônia. No seu entendimento, não se podia vincular a necessidade de combater o negócio das drogas com o problema da insurgência, que era da competência interna da Colômbia e devia ser politicamente resolvido, embora esta posição não significasse simpatia por qualquer solução tendente a ceder às FARC e ao ELN as zonas conquistadas, por implicar uma renúncia do estado colombiano à soberania sobre seu território. Entretanto, o governo brasileiro considerava que a via militar, como os Estados Unidos propunham, não resolveria a crise e recusou-se terminantemente a permitir a utilização de qualquer base ou outras instalações militares em seu território para operações na Colômbia.
A partir do final dos anos 90, as relações do Brasil com a Venezuela, onde Hugo Chávez ascendera ao governo, tenderam a estreitar-se cada vez mais. Na Cúpula das América, em Quebec entre 20 e 22 de abril, Hugo Chávez alinhou-se com Fernando Henrique Cardoso, nas críticas à ALCA, e compareceu à reunião da Cúpula do Mercosul, realizada em Assunção, em 21 e 22 de junho, quando formalizou o pedido para o ingresso da Venezuela no Mercosul e, referindo que Fernando Henrique Cardoso dissera que a "ALCA es opción y nuestro destino es el Mercosur", endossou que "este es nuestro destino, el sur, la Cruz del Sur"[48]. Nos primeiros anos da década de 2000, a situação agravou-se, no entanto, em quase todos os países da América do Sul. O processo de paz fracassou na Colômbia, onde os Estados Unidos aprofundaram sua intervenção na luta contra as FARC, não propriamente para combater o narcotráfico, mas, sobretudo, a fim de garantir o fluxo do petróleo, que saía de lá e do Equador. E, em dezembro de 2001, a Argentina entrou em colapso financeiro, bancarrota, em meio de dramática convulsão social e crise política tão profunda que levou Fernando Henrique Cardoso a advertir o presidente George W. Bush sobre o perigo de uma ruptura institucional, caso o governo de Eduardo Duhalde não recebesse ajuda internacional. Também no Equador a situação configurou-se instável e os indígenas, em fevereiro de 2002, anunciaram que realizariam novas manifestações de massa, em Quito, contra as privatizações promovidas pelo governo de Gustavo Noboa com o fito de protestar contra o não cumprimento do acordo que pôs fim ao levante, no início de 2001[49].
A Venezuela, com a qual o Brasil tratava de estreitar seu relacionamento, começou a enfrentar crescentes dificuldades políticas, fomentadas pela CIA, DIA e outros agências dos Estados Unidos. De 11 para 12 de abril de 2002, na Venezuela. três generais prenderam o presidente Hugo Chávez, levaram-no para o Forte Tiuna, e o general Lucas Rincón Romero, chefe do Estado Maior do Exército da Venezuela, anunciou sua renúncia à presidência da República. Pedro Carmona Estanca, presidente da Fedecámaras, assumiu o governo da Venezuela, com o apoio dos meios de comunicação e o respaldo não tanto encoberto da administração do presidente americano George W. Bush[50], que se dispunha a reconhecê-lo. E a fim de facilitar essa decisão, dado que a Carta Democrática Interamericana condenava qualquer ruptura da legalidade, Phillip Chicola, funcionário do Departamento de Estado, pediu, no dia 12, que a transição conservasse as formas constitucionais, ou seja, que a Assembléia Nacional e a Corte Suprema aprovassem a renúncia de Chávez[51] e novas eleições, com observadores da OEA, fossem convocadas para dentro de um prazo razoável. A manobra, no entanto, fracassou. Enquanto as camadas mais pobres da população, favoráveis a Chávez, ocupavam as ruas de Caracas, saqueando as lojas, espraiando-se a agitação pelas cidades de Guarenas, Los Teques, Coro e Maracay, a brigada de pára-quedistas, comandada pelo general Raúl Baudel, bem como outros regimentos sublevaram-se contra a presidência de facto de Pedro Carmona.
Se não tinha condições internas de sustentar-se, apenas respaldado pelas classes médias e altas, o governo da coalizão empresarial-militar, emanado do golpe de 11/12 de abril, defrontou-se outrossim com enormes dificuldades externas para o seu reconhecimento. O Grupo do Rio, que realizava em Costa Rica a XVI Cimeira presidencial, reprovou prontamente a ruptura da ordem constitucional na Venezuela e solicitou ao embaixador César Gaviria, secretário-geral da OEA a convocação urgente do Conselho Permanente, de acordo com o Art. 20 da Carta Democrática Interamericana[52], aprovada na sessão plenária de 11 de setembro de 2001, incorporando a resolução AG/RES. 1080 (XXI-O/91)[53]. A questão fora levantada primeiramente pelo Brasil e os embaixadores na OEA aprovaram uma resolução, em que condenaram "a alteração da ordem constitucional na Venezuela". Somente em face da atitude de todos os demais estados da região, inclusive México e Canadá, de repudiar o golpe contra o governo de Hugo Chávez, a delegação dos EUA resignou-se a subscrever a moção da OEA. Mas só o fez no sábado, 13 de abril, quando as manifestações de massa haviam compelido Carmona a renunciar e Chávez retornou ao poder[54].
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