Crise económica global:
Três anos de percurso
Osvaldo Martinez*
22.Mar.12 :: Outros autores
No texto desta conferência proferida no Centro de Investigações de Economia Mundial, Osvaldo Martinez não só desmonta a argumentação dos vendedores da ilusão da retoma económica na Europa e Estados Unidos e «a fantasia social-democrata [de que] a luta de classes acabou”, como explica por que razão a América Latina, desta vez e por enquanto, parece ser imune à crise do capitalismo.
Não vamos fazer agora uma análise da genesis da crise, das suas causas. Já o debatemos anteriormente, e o melhor que podemos fazer agora é tirarmos algumas conclusões do que aconteceu nestes 38 meses já passados de crise, fazer o prognóstico de ora em diante e terminar com algumas reflexões sobre a situação peculiar que nela está a viver a América Latina.
Antes de iniciar a abordagem da crise queria comentar um comentário, que me parece interessante, porque dá ideia da temperatura político-ideológica, inclusive académica, que nesta crise se está a atingir. Apesar de pouco divulgado, alguns de vós provavelmente já o conhecem, porque é uma dessas notícias desagradáveis para o monopólio mediático: no dia 2 de Novembro um grupo de estudantes retirou-se em bloco da Cátedra de Introdução à Economia da Universidade de Harvard, como protesto pelo conteúdo e abordagem a partir do qual se lecciona esta matéria. Sabiam disto? O destinatário directo deste protesto foi o Professor Gregory Mankiw, ex-assessor de Bush e autor de um dos manuais de macro-economia mais usados, um livro extremamente popular no universo neoclássico. Os alunos entregaram uma carta explicando as suas razões, que se podem sintetizar no seguinte:
Indignação pelo vazio intelectual e a corrupção moral de grande parte do mundo académico, cúmplices, por acção e omissão, da actual crise económica; e vou citar alguns parágrafos avulsos dessa carta que os estudantes entregaram ao Professor Gregory Mankiw, como explicação das razões pelas se retirarem em bloco da aula, cito:
«Estamos hoje a abandonar a sua aula com o objectivo de expressar o nosso descontentamento com o caminho inerente a este curso. Um estudo académico legítimo da economia deve incluir uma discussão crítica das vantagens e dos defeitos dos diferentes modelos económicos. Na medida em que as suas lições não indicam as fontes primárias e raramente se apresentam artigos em revistas académicas, temos muito pouco acesso a aproximações económicas alternativas; não há qualquer justificação para a apresentação das teorias económicas de Adam Smith como algo mais fundamental ou básico que por exemplo a teoria keynesiana. Hoje estamos a retirar-nos da sua aula como protesto pela falta de discussão da teoria económica básica, e também para dar o nosso apoio a um movimento que está a mudar o discurso estadunidense sobre a injustiça económica: Ocupar Wall Street. Professor Mankiw, pedimos-lhe que leve a sério as nossas inquietações e a retirada da sua aula».
Isto não se passou numa qualquer Universidade, aconteceu na Universidade de super elite, a que forma a elite empresarial e política norte-americana, a Universidade de Harvard. Tudo isto dá ideia de até que ponto, inclusive entre estudantes da elite – para Harvard não vão estudantes pobres, salvo raras excepções – se está a silenciar este fenómeno da crise económica. E, naturalmente, o abismo entre o que se ensina nessas universidades nos cursos de Economia predominantes e o que na realidade está a ocorrer.
Para iniciar a abordagem destes três anos de percurso da crise económica global queria começar por algumas informações de carácter histórico que andam à volta do próprio conceito de crise; algumas delas demonstram quão longe do tema está a teoria económica neoclássica imperante. Em 1973, o prémio Nobel da Economia, muito famoso entre nós, Paul Samuelson, autor de um livro muito divulgado no mundo inteiro escrevia, e cito:
«O National Bureau of Economic Research trabalhou tão bem que de facto eliminou uma das suas tarefas principais, as flutuações cíclicas» e acrescentava: «Graças ao emprego apropriado de políticas monetárias e fiscais, o nosso de economia mista pode evitar os excessos dos booms e das depressões e desenvolver o crescimento económico são e sustentado».
Era a altura em que as crises se consideravam absolutamente domesticadas e não havia que temê-las.
Na história do Ocidente o termo crise remonta à Antiga Grécia, usou-o Tucídides na Guerra do Peloponeso e utilizava-o para definir o momento de decisão de uma batalha militar. Posteriormente, na Antiga Grécia o termo crise começou a usar-se na medicina. Hipócrates utilizou-o na medicina e no campo da medicina permaneceu durante séculos, até que no final do século XVIII, na Europa, se começou a aplicar a sucessos sociais. Na economia clássica burguesa o conceito de crise começa a ser debatido, não tanto em Adam Smith, quer porque escreve em finais do século XVIII, num momento de relativa imaturidade da economia capitalista quer, entre outras coisas, pelo conhecido «Dogma de Smith» que o impediu – juntamente com a referida imaturidade do capitalismo – de avançar muito no estudo das crises. Em David Ricardo já o tema das crises está mais elaborado, ainda que em toda a economia não marxista do século XIX haja um peso muito forte do dogma de Say, o de que «toda a oferta cria a sua própria procura», a partir do qual era impossível a ocorrência de uma crise económica. Marx, naturalmente, é o grande economista que, pela primeira vez, elabora uma teoria mais profunda e coerente sobre o tema das crises e é a partir da sua detecção da primeira crise na economia inglesa, em 1825, que estatisticamente estas se começam a verificar, e a partir de então podemos começar a falar de uma história das crises económicas capitalistas.
O termo crise económica, ou crise, em geral, foi tão prodigalizado que confunde, converteu-se numa espécie de jóquer que serve para qualquer coisa. Em Economia costuma chamar-se crise à fase descendente do ciclo e há, naturalmente, muitas variantes de crises económicas: financeiras, agrárias, comerciais, de sobreprodução, de subconsumo, etc., apesar de toda e qualquer a crise não ser somente económica mas envolver também o político, o cultural, etc. Um elemento interessante sobre isto foi Friedrich Engels ter dito, em 1870, que as crises que até aquele momento, na economia inglesa, se tinha observado com períodos aproximados de dez anos entre uma e outra, eram já coisa do passado e disse ainda o seguinte, e cito: «A supressão do monopólio inglês sobre o mercado mundial e os novos meios de comunicação – sublinho e os novos meios de comunicação, dito por Engels em 1870 – contribuíram para liquidar os ciclos decenais da crise industrial» e prognosticava um encurtamento do ciclo até chegar a uma espécie de «crise crónica», que ele chamou de uma «super crise», provavelmente acompanhada por guerras, pelo que, podemos dizer, é uma quase antecipação do desastre de 1914 a 1918: crise económica acompanhando a guerra mundial. Isto disse-o em 1870, e chamo a atenção como em referência às crises Engels sublinhava os «novos meios de comunicação», que na época eram o telégrafo e a navegação a vapor.
Entrando na situação actual da crise, dizia eu no começo que não ia entrar na sua etiologia e no desenvolvimento havido, começando pela crise imobiliária nos Estados Unidos, etc.
O que vou apresentar são algumas conclusões que creio podem extrair-se após três anos de crise.
Vou-as dizendo e comentando uma a uma, não necessariamente num encadeamento lógico, ou seja uma conclusão não é consequência da anterior, indicá-las-ei de uma forma aleatória.
Em primeiro lugar uma coisa óbvia que nunca é demais repetir: a actual crise é a mais grave, profunda e abrangente desde 1929, e é diferente de qualquer outra, ainda que o seu ADN seja o de uma crise capitalista, tipificada pela economia marxista. Não é uma crise norte-americana alargada ao resto do mundo como por vezes se apresenta, mas é uma crise global com centro nos Estados Unidos, o que não é o mesmo. Ela provocou comentários de muitas e personalidades conotadas com o sistema. Selecionando algumas destas personalidades, Paul Volcker, desde muito cedo, logo no rebentar da crise, chamou a atenção que esta era muito mais complicada que a crise de 1929. Brzezinsky comentou, também muito cedo, que estando de acordo em que esta crise era mais complicada que a 1929, falou do perigo de conflitos sociais que podiam tornar-se violentos. Hoje, de certo modo, começa a cumprir-se essa expressão de Brzezinsky, e já iremos falar um pouco da reacção social provocada pela crise. Dois conhecidos economistas, Stiglitz e Roubini fizeram, em termos diferentes e com diferentes matizes, a exumação de Karl Marx, reconhecendo que sobre as crises, Karl Marx tinha feito uma análise atendível, naturalmente não aderindo ao marxismo, mas reconhecendo que Marx tinha coisas importantes a dizer sobre isto e de acordo com o movimento de um certo retorno à leitura de Marx, que tinha ficado empoeirado nas prateleiras das livrarias.
Além disso, esta crise está a revelar um elemento novo no sistema que podemos chamar de um sentença orgânica múltipla, ou seja sentencia a economia mas também sentencia a energia, o sector de alimentação e sentencia naturalmente o meio-ambiente, pelo menos se não o sentencia revela a sua profunda degradação. Pela primeira vez tudo junto numa crise, uma grande crise económica, uma crise energética, uma crise alimentar, uma crise ecológica. Será isto o cumprimento de certas teorias sobre o chamado capitalismo senil que o economista argentino Jorge Bernstein vem sustentando? Ele fala de quatro traços da senilidade do sistema, compreendendo o capitalismo senil não como um capitalismo que vai morrer amanhã, mas um capitalismo que na sua senilidade pode durar um século mais, mas com as características de vida de um organismo senil. Ele destaca quatro características que me parecem interessantes:
a) Um primeiro traço, uma tendência a longo prazo para a desaceleração do crescimento económico mundial, estatisticamente comprovada.
b) Um segundo traço é a hipertrofia financeira global, a tal extremo hegemónica que domina a totalidade do sistema mundial ou, por outras palavras, a financeirização manda hoje sobre a economia mundial.
c) Um terceiro elemento por ele indicado é os rendimentos produtivos decrescentes da revolução tecnológica, que se vai convertendo em factor destruidor de forças produtivas, mais do que criador ou factor de desenvolvimento de forças produtivas, e coloca um exemplo muito claro: o dueto da informática e da financeirização, com o primeiro ao serviço do segundo que, por sua vez se converte num factor de destruição de empregos e destruidor de forças produtivas, contribuindo para alimentar bolhas financeiras que exploram e provocam a destruição de forças produtivas.
d) E um quarto factor é a decadência do Estado burguês, o que também me parece visível: deterioração institucional nos Estados Unidos. Neste momento, crise dos Estados europeus.
Depois de trinta e oito meses de crise, passando a outra conclusão, não há recuperação à vista, as perspectivas para 2012 são, atrever-me-ia a dizer, sombrias. Alguns economistas como Roubini que se tornou famoso por prognosticar a ocorrência da crise em 2008, consideram que há 50% de possibilidades de em 2012 acontecer outra queda numa crise semelhante, ou mais grave que a de 2008. Presentemente os elementos de destruição predominam sobre os de criação.
Outra conclusão é a que nunca na história do sistema tinha havido uma resposta estatal tão rápida e avultada em desembolsos, mas com resultados nulos. Refiro-me aos pacotes de resgate que se puseram em prática pelo governo de Bush ou pelo de Obama, pela Europa, pelo Japão. Estes resgates tiveram uma característica dual: por um lado, provavelmente evitaram uma queda ainda mais profunda, mas este elemento positivo para o sistema mostra uma cara muito feia, porque mantiveram uma estrutura especulativa parasitária, pelo que apenas a ampararam; deram respiração artificial com vida limitada, ou seja, quando estes pacotes de resgate acabam, também termina a respiração artificial; criaram uma nova bolha financeira que é a do resgate e aumentaram o sobre-endivamento público que hoje pesa como um fardo nos Estados Unidos e na Europa; ou seja, os pacotes de resgate foram como um remédio que a curto prazo evitou um agravamento do estado do paciente, mas também teve outros efeitos muito negativos.
Outro elemento que quero assinalar: por vezes ouvimos, lemos, que a solução da crise, a solução para o capitalismo, está em abandonar o vício da hipertrofia financeira e voltar ao bom capitalismo, ou seja ao capitalismo produtivo, ao capitalismo empresarial, ao capitalismo da economia real, o que constitui um dos grandes temas social-democratas.
Reflectindo sobre tudo isto, tenho a opinião de que não se trata de um problema de preferências, isto é, não é voltar àquele, abandonando este como se fossem modelos que se podem adoptar consoante as conveniências do momento. Parece-me que o sistema não pode voltar ao capitalismo produtivo e à cultura produtiva, e isto com base nas estatísticas que demonstram que 50% dos lucros das grandes empresas (as mega empresas) nos Estados Unidos e na Europa, pelo menos, provêm dos negócios financeiros. Não se trata de dois mundos, um mundo financeiro e o mundo da economia real; trata-se de um todo, um sistema produtivo financeiro integrado no interior das próprias mega empresas; não se trata, repito, de dois mundos, o mundo da economia real e o mundo da economia financeira; e esse sistema integrado está de tal forma arreigado e à volta de interesses económicos tão fortes que pensar que é possível separar um do outro é pura e simplesmente uma utopia. Creio que o fracasso de Obama e de toda a Europa e do Japão ao avançarem na desregulação financeira não é só o resultado da pusilanimidade de Obama, ainda que esta esteja presente, mas da impossibilidade de a oligarquia financeira amputar uma das suas pernas. O que não se avança quanto à desregulação financeira não é um problema de liderança politica, é o problema das mega empresas estarem tão integradas no produtivo e no financeiro que é impossível pensar que elas vão amputar uma das suas pernas, talvez tendo em conta um interesse, uma visão superior da sobrevivência do sistema; isso parece-me ser impossível, por isso me parecem utópicas estas afirmações de voltar ao capitalismo bom, ao capitalismo não de George Soros mas de Henry Ford.
Uma conclusão mais sobre a política económica é a de que o neoliberalismo fracassou, o que não é nenhuma notícia surpreendente, mas ele está vivo. E continua com toda a força, com tanta força que foi capaz de envolver as tímidas medidas keynesianas, de tal maneira que conseguiu conservar a liberalização financeira e alimentá-la com a despesa pública, ou seja, pegando na keynesiana despesa pública e convertendo-a num instrumento ao serviço da liberalização financeira; tudo isto com um discurso crítico à desregulação financeira à mistura. Até que ponto demonstrou uma grande ductilidade e capacidade de manobra esta oligarquia financeira… E impôs mais recentemente a política liberal pura e dura, isto é, a política do equilíbrio fiscal e do ajuste recessivo no caso europeu, como uma suposta fórmula anticrise. Isto coloca-nos uma interrogação, que é a de que talvez se tenha encerrado para sempre o ciclo keynesiano, ou seja, a possibilidade de haver verdadeiro keynesianismo, não o keynesianismo de mentiritas praticado por Obama de despesa pública sem uma verdadeira regulação financeira, na realidade, uma despesa pública ao serviço da sustentação das grandes entidades financeiras especulativas. Então, fechou-se a possibilidade da política keynesiana. O peso e o poder dessa oligarquia financeira totalmente integrada no produtivo e no financeiro, provavelmente chegou a um grau tal que hoje o sistema não pode fazer o que fez na década de trinta, quando esta financeirização era muito menor do que é agora; e naquela altura pode fazê-lo ajudada também pela guerra mundial, mas encerrou-se para sempre o ciclo keynesiano? Ficou Keynes como um elemento de referência académica e política para determinada época? Creio que se disséssemos isto a Krugman, ele nos responderia irritado que não, que para ele o keynesianismo tem toda a razão de ser e ele, naturalmente, continua um defensor do essencial do keynesianismo, mas numa crise de tal profundidade como esta, onde os receios de Keynes de que a economia de casino engolisse toda a economia e convertesse o sistema capitalista num sistema de apostas financeiras, numa crise destas, os receios de Keynes tornaram-se realidade, já não são receios teóricos, são a realidade; e 38 meses de crise não foram capazes de provocar um regresso ao keynesianismo. Na realidade, o que temos visto é uma utilização de certas fórmulas de Keynes, mas sempre dentro de uma matriz de conservação da financeirização.
Assim, uma conclusão mais que me parece muito importante é a de que a situação hoje é muito diferente da de 2008, a de Setembro de 2008, quando rebentou a crise. Naquele momento os Estados, os governos capitalistas tinham um arsenal de medidas anticrise que podiam, pelo menos teoricamente, ser aplicados. A crise rebentou, forte, mas temos com que enfrentá-la, temos um arsenal de medidas anticrise. Esse arsenal aplicou-se completamente ao longo destes três anos, de tal modo que hoje já não resta nada, esgotaram-se todos os recursos do arsenal anticrise. Que recursos? Diminuição das taxas de juro, que permaneceram praticamente a nível zero durante larguíssimos períodos e assim continua sem que a reanimação surja; baixa de impostos, Bush fê-la em larga escala, naturalmente uma baixa de impostos que incidiu principalmente sobre os sectores mais ricos, na pressuposição de estes sectores iriam investir estimulados pela baixa de impostos, mas não se verificou o esperado investimento; outro recurso foi injecções massivas de liquidez, o «quantitave easing» de Obama: 600 000 milhões de dólares foram injectados sem que a economia americana parecesse inteirar-se disso; e, naturalmente, o que mencionei anteriormente, os pacotes de resgate massivamente utilizados pelos Estados Unidos, pela Europa e pelo Japão. Parece que já não há mais medidas para ensaiar excepto uma, um regresso à regulação estatal pura e dura, ou seja, o keynesianismo de verdade que é o que tenho muitas dúvidas que seja possível, para além de algumas elucubrações teóricas.
Algumas palavras sobre um outro elemento, o custo social da crise. A crise cobrou um custo social: mais 300 milhões de pobres, mais cerca de 170 milhões de famintos, e mais 30 milhões de desempregados do que quando rebentou a crise; no entanto, até há alguns meses, a reacção social tinha sido mais de direita que de esquerda, era muito mais significativa a insurreição de movimentos como o Tea Party nos Estados Unidos e grupos fascistoides de extrema-direita, racistas e xenófobos na Europa, que um movimento de esquerda, de protesto social perante a crise. Nos últimos meses o quadro mudou, apareceram Os Indignados, o movimento de ocupação de Wall Street e na Europa também animou o movimento de protesto social. Embora seja impossível fazer vaticínios dá a impressão que começa a mover-se um movimento de protesto social que pode tornar-se muito importante. Isto foi importante nos anos 30, então, foi um dos factores que motivaram a mudança política económica naquela época, particularmente nos Estados Unidos com o governo de Roosevelt. É impossível dizer até onde tudo isto vai chegar, mas este movimento de ocupação de Wall Street, que é o protesto contra os grandes símbolos do sistema, pode ser um elemento politicamente muito importante, se esse movimento for capaz de traçar metas concretas, criar um certo nível de organização, escolher uma liderança pois, caso contrário, corre o risco de ser absorvido e ficar como uma coisa anedótica. Mas é por aí que se começa, e o facto de terem aparecido Indignados até em Israel é um elemento, sem dúvida, a ter em conta.
Um ponto mais quero acrescentar, que é o facto de nesta crise ter ocorrido um elemento novo: a especulação assenhorou-se não só nos lugares ou terrenos onde sempre actuou, ou seja os mercados financeiros, mas assenhorou-se também dos mercados de alimentos e matérias-primas, especialmente dos alimentos, e produzindo uma alta de preços dos alimentos; parece-me até que se ligou a especulação com qualquer coisa como uma caldeira social perigosa para o sistema, e que pode ter uma grande conexão com os indignados, indigná-los mais, e não apenas os de Wall Street, mas as grandes massas de pessoas do mundo inteiro. Os acontecimentos do Egipto e de Tunes estiveram muito ligados à alta dos preços dos alimentos, e agora no Egipto começa a ver-se que o que aparentemente tinha sido a capacidade do sistema absorver o movimento de rebelião e o domesticar parece não se ter verificado; aparece agora como não domesticado, voltaram a surgir os manifestantes, pedem mais e não se contentam com soluções de mercurocromo, como a que lhe tinha sido administrada. O sistema usou a especulação com os preços dos alimentos como uma das fórmulas de manter a taxa de lucro, mas ao fazê-lo está a dar aso a um jogo muito mais perigoso que o da especulação de títulos, de taxas de câmbio, ou com os muitos derivados financeiros que existem. Está a jogar com os preços dos alimentos, está a jogar com a fome das pessoas, e por isso parece-me que estamos na presença de uma caldeira social cuja temperatura pode subir a níveis muito perigosos para o sistema.
Neste final de 2011 observam-se na economia mundial algumas coisas curiosas, que prendem a atenção, como o facto de esta crise que leva já 38 meses de evolução estar num momento álgido e, no entanto, os lucros capitalistas não diminuíram, estão em alta, a bolha financeira não diminuiu, apesar da destruição de uma parte dela, destruiu-se uma parte mas criou-se outra, pelo que a bolha não diminuiu, até aumentou alimentada pelos pacotes de resgate que criaram a bolha do resgate, alimentada pela diminuição dos impostos e até, inclusive, pelos empréstimos da Reserva Federal; e por último observa-se que continua a crescer a desigualdade social; nos Estados Unidos é uma tendência sustentada que continua em crescimento. Quais são as perspectivas para o ano de 2012? Um possível agravamento da crise pois não se prevê, em parte alguma, uma recuperação para 2012. Se pegarmos nos grandes centros do poder económico mundial, os Estados Unidos, o crescimento deste ano deve estar entre 1 e 1,5%, não mais do que isso, isto é um crescimento que virtualmente é uma estagnação, o desemprego mantém-se à volta de 9%, a inflação continua a aumentar, os preços das casas no sector imobiliário continuam em queda e o investimento não aumenta. Esta é a situação da economia norte-americana. Na Europa estão numa situação tal que já não se trata do embate da crise económica mas da salvação da União Europeia e da salvação do euro que estão hoje a tratar. Para o Japão as perspectivas da sua economia, vítima de uma estagnação quase crónica que vem já de longa data, não são de recuperação em 2012. Quanto à China, apesar das suas enormes taxas de crescimento conseguidas durante largos anos, são as próprias autoridades chinesas que estão a colocar a necessidade de alguma desaceleração do crescimento em 2012, desaceleração que seria crescer uns sete e meio, uns 8% talvez, isto é, um enorme crescimento mas não a 10%. Isto é o que as autoridades chinesas estão a colocar, para evitar um sobre-aquecimento da economia, ou seja tratar de conter uma certa tendência inflacionista que se está a manifestar, estimulada por taxas de crescimento muito altas com alimentos importados muito caros, com petróleo importado muito caro, alguma bolha imobiliária, e um grau de incerteza quanto às exportações para os Estados Unidos e Europa, os grandes mercados de venda das exportações chinesas. Há uma grande incerteza de quanto se vai aprofundar a crise nos Estados Unidos e na Europa, e isso, naturalmente, significa que vai diminuir a exportação chinesa para esses mercados. Na China não se vai verificar uma crise em 2012, mas vai provavelmente desacelerar alguma coisa o crescimento, o que se vai somar aos problemas centrais na economia dos Estados Unidos, da Europa e do Japão.
Não é possível omitir a relação da América Latina com a crise económica global porque é uma relação muito peculiar. A América Latina vive uma situação atípica no contexto destes três anos de crise global já percorridos, e a verdade é que, enquanto há uma profunda crise nos grandes centros capitalistas, a América Latina vive uma bonança económica, naturalmente uma bonança económica dentro do seu subdesenvolvimento, dentro da dependência, mas bonança económica em termos de taxas de crescimento. A América Latina em 2010 cresceu muito perto dos 6% como média regional. No ano de 2011 deve crescer à volta de 5%, que continua a ser uma taxa muito alta. Em 2009 a América Latina sofreu o impacto da crise e teve um crescimento negativo de 1,2%, mas em 2010 e 2011 mudou radicalmente o quadro. A América Latina entre 2010 e 2011 teve uma melhoria de 13% da relação dos termos de intercâmbio. Então temos na América Latina: relativa bonança económica, uma relação de termos de intercâmbio favorável, altos preços das exportações de commodities, e no entanto os Estados Unidos e a Europa, os seus grandes centros de referência, estão em plena crise económica. Aparentemente é desconcertante, atendendo à lógica e à história. A lógica diz-nos que nas áreas dependentes, subdesenvolvidas, a crise impacta com mais força ainda que nos centros do capitalismo, e se olharmos a história foi assim nos anos trinta; a crise dos anos 30 impactou na América Latina com uma força multiplicada; em Cuba foi a crise económica que acompanhou o machadato: [1] açúcar a menos de um centavo a libra, fome generalizada na população cubana, o que se repetiu pela América Latina, a baixa dos preços das exportações, quase as mesmas commodities que se exportam hoje porque não houve uma mudança estrutural nessas exportações, as mesmas dos anos 30 são em boa medida quase as mesmas de hoje, no entanto hoje têm preços mais altos. Que explicação tem isto e que conclusões se podem tirar? Há duas explicações para a manutenção dos altos preços das commodities na América Latina: a especulação, o capital especulativo tomou os alimentos e as matérias-primas como objectos de especulação, o que não aconteceu em etapas anteriores, especulando na alta e entrando nesta especulação centenas de milhares de milhões de dólares; há informações que falam de que foram 600 000 milhões de dólares que entraram nos últimos quatro, cinco anos na especulação com commodities, contribuindo assim para aumentar os preços da soja, do cobre, da polpa de madeira, do açúcar, enfim, um variado mostruário de alimentos e matérias-primas. Esse é um factor, o segundo factor, naturalmente, é a procura na China. A China consumia 5% dos produtos básicos, das commodities que se comercializam no mundo. Hoje a China é o principal exportador mundial de alumínio, cobre, estanho, soja, cereal, e é o segundo consumidor mundial de petróleo e de açúcar, entre outras coisas. A China, e este dado é muito eloquente, no ano 2000 ocupava o 16º lugar entre os parceiros da América Latina. Hoje ocupa o segundo lugar e cresce com mais velocidade que todos os outros. Portanto, a China irrompeu como um mercado de enorme importância para a América Latina, sendo hoje o principal parceiro da Argentina, um dos principais do Perú, do Chile, do Brasil e assim sucessivamente. Por isso a procura chinesa foi um factor que contribuiu para a manutenção das exportações latino-americanas, da alta dos preços e que tem estado a actuar como um amortecedor da crise. Nalguma medida, o que a América Latina deixou de exportar para os Estados Unidos e para a Europa foi compensado com o aumento das exportações para a China e a preços elevados. Será isto o resultado de uma concertação latino-americana? Não. De modo algum. Esta situação começa a provocar uma justificação, uma certa racionalização teórica, começa a falar-se da possibilidade de um longo ciclo de 20 anos, da possibilidade de 20 anos de preços elevados das commodities; a CEPAL [2] embora ainda a coloque como uma possibilidade já introduz o conceito. Outros convertem a necessidade em virtude e dizem que é o resultado da previsão latino-americana, de a América Latina ter saneado as suas economias, de ter elevadas reservas monetárias, de ter a inflação controlada, que isto é um fruto que a América Latina está a colher pela sua boa política económica anterior. Na realidade, nem a acção especulativa do grande capital em commodities, nem a procura chinesa têm nada a ver com uma concertação latino-americana, nem com nenhuma previsão latino-americana. Quase podíamos dizer que são coisas que caíram como uma luva, no meio do azar da crise mundial.
Esta bonança tem duas características: a primeira é a sua fugacidade. A fugacidade tem a ver com o facto de a acção especulativa em commodities ser algo que está muito longe de ser um factor estável, em que se possa confiar como uma tendência a longo prazo. Este capital especulativo tão volátil pode voar para qualquer outro nicho de especulação e deixar a América Latina pendurada no pau da roupa, pelo que, eliminado esse factor, as commodities voltarão a fazer o que durante séculos fizeram, baixarem. A procura chinesa tampouco é um factor que se possa considerar eterno. Dissemos que a China, logicamente, vai avançando para um desenvolvimento tecnológico e, assim, reduzir o consumo relativo de matérias-primas, vai depender cada vez mais da sua capacidade interna de produção pelo que as importações da América Latina podem ir diminuindo com o tempo. Não pode pensar-se que a China vai continuar a importar estas quantidades de soja, para além doutro importante factor, outro importante custo, que faz parte de um importante debate latino-americano, que é a chamada reprimarização da economia latino-americana. Nos últimos anos deu-se um retrocesso na estrutura das exportações latino-americanas no sentido da reprimarização, ou seja, a América Latina está a vender à China grão de soja, minério de ferro, cobre em boa medida sem refinar, um conjunto de produtos básicos, primários, a um preço alto, mas produtos que significam uma consolidação desse padrão de exportação primária. A ideia que quero sublinhar é que esta bonança latino-americana está segura com pinças frágeis: a especulação em commodities que provoca preços elevados é instável, e a procura chinesa deve ser aproveitada para avançar numa transformação da estrutura de exportação, e num maior conteúdo tecnológico e do conhecimento das exportações latino-americanas e evitar que estas se convertam num factor de consolidação da estrutura primária, inclusive voltando mais para trás que estava a América Latina há dez anos.
O neoliberalismo também fracassou na América Latina. Fracassou tanto que na região se deu uma reacção antineoliberal e uma procura de alternativas ao neoliberalismo, em associação com movimentos sociais. No entanto, o neoliberalismo perdura na região. Conta com coisas que nenhuma outra proposta de política económica tem, uma proposta integral, uma proposta completa, abarcadora, tem uma estrutura internacional comercial e financeira; tem uma rede de Tratados de Livre Comércio. Na América Latina há mais de dez Tratados de Livre Comércio vigentes com os Estados Unidos e a Europa; e conta ainda com uma coisa tão importante como o domínio mediático.
Hoje, na América Latina, um dos grandes debates é sobre as alternativas ao neoliberalismo, alternativas que podemos perguntar-nos se estão dentro ou fora do capitalismo? As respostas são de uma gama variadíssima e vão, das propostas de um chamado capitalismo nacional, como é o caso da Argentina, um capitalismo nacional, e ver se tal coisa é possível na era da globalização actual, no que é um pouco uma volta a certos tons peronistas de há sessenta anos, até ao caso do Brasil, uma potência emergente, com um neoliberalismo mitigado; o facto de Lula ter terminado a sua governação com 80% de aceitação, é um sucesso político importante mas isso significa também uma coisa muito peculiar, quer dizer que Lula é aplaudido tanto pelos pobres como pelos ricos. É a fantasia social-democrata, a luta de classes acabou e Lula conseguiu este resultado. Também não é difícil apercebermo-nos que ocorreu em condições essenciais, incluindo a política externa praticada pelo governo de Lula, independente e muito positiva. Mas ali deu-se uma combinação peculiar, onde as estruturas neoliberais fundamentais não foram tocadas, a política económica foi neoliberal durante todo o tempo, inclusive os protagonistas individuais foram essencialmente os mesmos da política anterior no Banco Central, no ministério da Fazenda. Nem sequer se fez a reforma agrária, mas houve uma elevada receita com as exportações, devido ao alto preço das commodities que permitir à burguesia fazer excelentes negócios, mas também permitiu que várias dezenas de milhões de brasileiros saíssem da extrema pobreza, através dos programas Bolsa de Família e Fome Zero; pessoas que não comiam passaram a comer alguma coisa e são hoje entusiastas partidários do governo que, pela primeira vez, lhes deu de comer, e isto é uma coisa que tem muito a ver com a conjuntura actual da América Latina.
Para terminar, duas palavras sobre o que me parece ser uma oportunidade especial para a integração latino-americana. A integração latino-americana tem hoje, talvez, uma conjuntura especialmente favorável para avançar verdadeiramente e que é, em poucas palavras, o facto de os Estados Unidos e a Europa estarem tão enredados na sua própria crise que nenhum deles está em posição de propor à América Latina um plano sedutor de associação que arraste, como tantas outras vezes, os latino-americanos em perseguição de uma associação idílica com os Estados Unidos e a Europa. Hoje os Estados Unidos estão absorvidos com a sua própria crise, não estão em condições de poder colocar à América Latina nada que se compare com uma Aliança para o Progresso, ou mesmo com uma ALCA. A braços com a sua própria crise, os Estados Unidos só podem propor à América Latina mais do mesmo: exclusivamente TLC’s; e isso a América Latina conhece muito bem, sabe o que dá, não constitui novidade alguma. A Europa tem colocada para a América Latina uma grandiloquente proposta de Associação Estratégica Bi-regional, que mais não é do que uma rede de Tratados de Livre Comércio, mas hoje na Europa ninguém dá qualquer atenção a essa proposta. A Europa está demasiado mergulhada na sua crise, demasiado preocupada em salvar a União Europeia e o euro para pensar numa associação estratégica com a América Latina. Isto significa que os latino-americanos têm a possibilidade de avançar com a sua própria integração sem o fardo que significa combater contra propostas oriundas dos Estados Unidos ou da Europa, como tradicionalmente teve que fazer a integração latino-americana, ou seja, há a possibilidade de a integração ser pensada pelos próprios latino-americanos. Fazê-lo ou não depende de muitíssimos factores, mas se a América Latina utilizasse esta bonança económica relativa – que ninguém sabe até quando vai durar, mas pelo menos em 2012 talvez continue – e, aproveitando esta conjuntura, avançasse em termos substantivos na integração seria muito bom. Não se trata, como alguém já me perguntou uma vez, de aproveitar agora porque norte-americanos e europeus estão distraídos, não é que estejam distraídos, não é aproveitar não estarem a olhar para nós para fazer a nossa integração, pois eles estão muito atentos, o problema é que não podem fazer outra coisa. Então, é aproveitar esta bonança, esta «distração» dos Estados Unidos e da Europa para avançar. Uma direcção positiva é indubitavelmente a próxima criação da CELAC, o primeiro organismo latino-americano que reúne todos os latino-americanos sem a presença dos Estados Unidos nem de nenhum outro país extra regional.
Nota do tradutor:
[1] Refere-se à ditadura do general Gerardo Machado que tomou o poder em 1925 e caiu em 1933.
[2] CEPAL, Comissão Económica para a América Latina e o Caribe, criada em 1948 pelo Conselho Económico e Social das Nações Unidas com o objectivo de incentivar as relações económicas entre os seus membros.
* Economista e Professor universitário cubano, Osvaldo Martinez é Deputado na Assembleia Nacional do Poder Popular, Director do Centro de Investigação de Economia Mundial e presidente da Comissão de Assuntos Económicos da Assembleia Nacional do Poder Popular
Este é o texto de uma conferência proferida pelo autor no Centro de Investigações da Economia Mundial, publicado originalmente em Cubadebate a 4 de janeiro de 2012 em:
http://cuba.cubadebate.cu/opinion/2012/01/04/crisis-economica-global-tres-anos-de-recorrido/
Tradução de José Paulo Gascão
Antes de iniciar a abordagem da crise queria comentar um comentário, que me parece interessante, porque dá ideia da temperatura político-ideológica, inclusive académica, que nesta crise se está a atingir. Apesar de pouco divulgado, alguns de vós provavelmente já o conhecem, porque é uma dessas notícias desagradáveis para o monopólio mediático: no dia 2 de Novembro um grupo de estudantes retirou-se em bloco da Cátedra de Introdução à Economia da Universidade de Harvard, como protesto pelo conteúdo e abordagem a partir do qual se lecciona esta matéria. Sabiam disto? O destinatário directo deste protesto foi o Professor Gregory Mankiw, ex-assessor de Bush e autor de um dos manuais de macro-economia mais usados, um livro extremamente popular no universo neoclássico. Os alunos entregaram uma carta explicando as suas razões, que se podem sintetizar no seguinte:
Indignação pelo vazio intelectual e a corrupção moral de grande parte do mundo académico, cúmplices, por acção e omissão, da actual crise económica; e vou citar alguns parágrafos avulsos dessa carta que os estudantes entregaram ao Professor Gregory Mankiw, como explicação das razões pelas se retirarem em bloco da aula, cito:
«Estamos hoje a abandonar a sua aula com o objectivo de expressar o nosso descontentamento com o caminho inerente a este curso. Um estudo académico legítimo da economia deve incluir uma discussão crítica das vantagens e dos defeitos dos diferentes modelos económicos. Na medida em que as suas lições não indicam as fontes primárias e raramente se apresentam artigos em revistas académicas, temos muito pouco acesso a aproximações económicas alternativas; não há qualquer justificação para a apresentação das teorias económicas de Adam Smith como algo mais fundamental ou básico que por exemplo a teoria keynesiana. Hoje estamos a retirar-nos da sua aula como protesto pela falta de discussão da teoria económica básica, e também para dar o nosso apoio a um movimento que está a mudar o discurso estadunidense sobre a injustiça económica: Ocupar Wall Street. Professor Mankiw, pedimos-lhe que leve a sério as nossas inquietações e a retirada da sua aula».
Isto não se passou numa qualquer Universidade, aconteceu na Universidade de super elite, a que forma a elite empresarial e política norte-americana, a Universidade de Harvard. Tudo isto dá ideia de até que ponto, inclusive entre estudantes da elite – para Harvard não vão estudantes pobres, salvo raras excepções – se está a silenciar este fenómeno da crise económica. E, naturalmente, o abismo entre o que se ensina nessas universidades nos cursos de Economia predominantes e o que na realidade está a ocorrer.
Para iniciar a abordagem destes três anos de percurso da crise económica global queria começar por algumas informações de carácter histórico que andam à volta do próprio conceito de crise; algumas delas demonstram quão longe do tema está a teoria económica neoclássica imperante. Em 1973, o prémio Nobel da Economia, muito famoso entre nós, Paul Samuelson, autor de um livro muito divulgado no mundo inteiro escrevia, e cito:
«O National Bureau of Economic Research trabalhou tão bem que de facto eliminou uma das suas tarefas principais, as flutuações cíclicas» e acrescentava: «Graças ao emprego apropriado de políticas monetárias e fiscais, o nosso de economia mista pode evitar os excessos dos booms e das depressões e desenvolver o crescimento económico são e sustentado».
Era a altura em que as crises se consideravam absolutamente domesticadas e não havia que temê-las.
Na história do Ocidente o termo crise remonta à Antiga Grécia, usou-o Tucídides na Guerra do Peloponeso e utilizava-o para definir o momento de decisão de uma batalha militar. Posteriormente, na Antiga Grécia o termo crise começou a usar-se na medicina. Hipócrates utilizou-o na medicina e no campo da medicina permaneceu durante séculos, até que no final do século XVIII, na Europa, se começou a aplicar a sucessos sociais. Na economia clássica burguesa o conceito de crise começa a ser debatido, não tanto em Adam Smith, quer porque escreve em finais do século XVIII, num momento de relativa imaturidade da economia capitalista quer, entre outras coisas, pelo conhecido «Dogma de Smith» que o impediu – juntamente com a referida imaturidade do capitalismo – de avançar muito no estudo das crises. Em David Ricardo já o tema das crises está mais elaborado, ainda que em toda a economia não marxista do século XIX haja um peso muito forte do dogma de Say, o de que «toda a oferta cria a sua própria procura», a partir do qual era impossível a ocorrência de uma crise económica. Marx, naturalmente, é o grande economista que, pela primeira vez, elabora uma teoria mais profunda e coerente sobre o tema das crises e é a partir da sua detecção da primeira crise na economia inglesa, em 1825, que estatisticamente estas se começam a verificar, e a partir de então podemos começar a falar de uma história das crises económicas capitalistas.
O termo crise económica, ou crise, em geral, foi tão prodigalizado que confunde, converteu-se numa espécie de jóquer que serve para qualquer coisa. Em Economia costuma chamar-se crise à fase descendente do ciclo e há, naturalmente, muitas variantes de crises económicas: financeiras, agrárias, comerciais, de sobreprodução, de subconsumo, etc., apesar de toda e qualquer a crise não ser somente económica mas envolver também o político, o cultural, etc. Um elemento interessante sobre isto foi Friedrich Engels ter dito, em 1870, que as crises que até aquele momento, na economia inglesa, se tinha observado com períodos aproximados de dez anos entre uma e outra, eram já coisa do passado e disse ainda o seguinte, e cito: «A supressão do monopólio inglês sobre o mercado mundial e os novos meios de comunicação – sublinho e os novos meios de comunicação, dito por Engels em 1870 – contribuíram para liquidar os ciclos decenais da crise industrial» e prognosticava um encurtamento do ciclo até chegar a uma espécie de «crise crónica», que ele chamou de uma «super crise», provavelmente acompanhada por guerras, pelo que, podemos dizer, é uma quase antecipação do desastre de 1914 a 1918: crise económica acompanhando a guerra mundial. Isto disse-o em 1870, e chamo a atenção como em referência às crises Engels sublinhava os «novos meios de comunicação», que na época eram o telégrafo e a navegação a vapor.
Entrando na situação actual da crise, dizia eu no começo que não ia entrar na sua etiologia e no desenvolvimento havido, começando pela crise imobiliária nos Estados Unidos, etc.
O que vou apresentar são algumas conclusões que creio podem extrair-se após três anos de crise.
Vou-as dizendo e comentando uma a uma, não necessariamente num encadeamento lógico, ou seja uma conclusão não é consequência da anterior, indicá-las-ei de uma forma aleatória.
Em primeiro lugar uma coisa óbvia que nunca é demais repetir: a actual crise é a mais grave, profunda e abrangente desde 1929, e é diferente de qualquer outra, ainda que o seu ADN seja o de uma crise capitalista, tipificada pela economia marxista. Não é uma crise norte-americana alargada ao resto do mundo como por vezes se apresenta, mas é uma crise global com centro nos Estados Unidos, o que não é o mesmo. Ela provocou comentários de muitas e personalidades conotadas com o sistema. Selecionando algumas destas personalidades, Paul Volcker, desde muito cedo, logo no rebentar da crise, chamou a atenção que esta era muito mais complicada que a crise de 1929. Brzezinsky comentou, também muito cedo, que estando de acordo em que esta crise era mais complicada que a 1929, falou do perigo de conflitos sociais que podiam tornar-se violentos. Hoje, de certo modo, começa a cumprir-se essa expressão de Brzezinsky, e já iremos falar um pouco da reacção social provocada pela crise. Dois conhecidos economistas, Stiglitz e Roubini fizeram, em termos diferentes e com diferentes matizes, a exumação de Karl Marx, reconhecendo que sobre as crises, Karl Marx tinha feito uma análise atendível, naturalmente não aderindo ao marxismo, mas reconhecendo que Marx tinha coisas importantes a dizer sobre isto e de acordo com o movimento de um certo retorno à leitura de Marx, que tinha ficado empoeirado nas prateleiras das livrarias.
Além disso, esta crise está a revelar um elemento novo no sistema que podemos chamar de um sentença orgânica múltipla, ou seja sentencia a economia mas também sentencia a energia, o sector de alimentação e sentencia naturalmente o meio-ambiente, pelo menos se não o sentencia revela a sua profunda degradação. Pela primeira vez tudo junto numa crise, uma grande crise económica, uma crise energética, uma crise alimentar, uma crise ecológica. Será isto o cumprimento de certas teorias sobre o chamado capitalismo senil que o economista argentino Jorge Bernstein vem sustentando? Ele fala de quatro traços da senilidade do sistema, compreendendo o capitalismo senil não como um capitalismo que vai morrer amanhã, mas um capitalismo que na sua senilidade pode durar um século mais, mas com as características de vida de um organismo senil. Ele destaca quatro características que me parecem interessantes:
a) Um primeiro traço, uma tendência a longo prazo para a desaceleração do crescimento económico mundial, estatisticamente comprovada.
b) Um segundo traço é a hipertrofia financeira global, a tal extremo hegemónica que domina a totalidade do sistema mundial ou, por outras palavras, a financeirização manda hoje sobre a economia mundial.
c) Um terceiro elemento por ele indicado é os rendimentos produtivos decrescentes da revolução tecnológica, que se vai convertendo em factor destruidor de forças produtivas, mais do que criador ou factor de desenvolvimento de forças produtivas, e coloca um exemplo muito claro: o dueto da informática e da financeirização, com o primeiro ao serviço do segundo que, por sua vez se converte num factor de destruição de empregos e destruidor de forças produtivas, contribuindo para alimentar bolhas financeiras que exploram e provocam a destruição de forças produtivas.
d) E um quarto factor é a decadência do Estado burguês, o que também me parece visível: deterioração institucional nos Estados Unidos. Neste momento, crise dos Estados europeus.
Depois de trinta e oito meses de crise, passando a outra conclusão, não há recuperação à vista, as perspectivas para 2012 são, atrever-me-ia a dizer, sombrias. Alguns economistas como Roubini que se tornou famoso por prognosticar a ocorrência da crise em 2008, consideram que há 50% de possibilidades de em 2012 acontecer outra queda numa crise semelhante, ou mais grave que a de 2008. Presentemente os elementos de destruição predominam sobre os de criação.
Outra conclusão é a que nunca na história do sistema tinha havido uma resposta estatal tão rápida e avultada em desembolsos, mas com resultados nulos. Refiro-me aos pacotes de resgate que se puseram em prática pelo governo de Bush ou pelo de Obama, pela Europa, pelo Japão. Estes resgates tiveram uma característica dual: por um lado, provavelmente evitaram uma queda ainda mais profunda, mas este elemento positivo para o sistema mostra uma cara muito feia, porque mantiveram uma estrutura especulativa parasitária, pelo que apenas a ampararam; deram respiração artificial com vida limitada, ou seja, quando estes pacotes de resgate acabam, também termina a respiração artificial; criaram uma nova bolha financeira que é a do resgate e aumentaram o sobre-endivamento público que hoje pesa como um fardo nos Estados Unidos e na Europa; ou seja, os pacotes de resgate foram como um remédio que a curto prazo evitou um agravamento do estado do paciente, mas também teve outros efeitos muito negativos.
Outro elemento que quero assinalar: por vezes ouvimos, lemos, que a solução da crise, a solução para o capitalismo, está em abandonar o vício da hipertrofia financeira e voltar ao bom capitalismo, ou seja ao capitalismo produtivo, ao capitalismo empresarial, ao capitalismo da economia real, o que constitui um dos grandes temas social-democratas.
Reflectindo sobre tudo isto, tenho a opinião de que não se trata de um problema de preferências, isto é, não é voltar àquele, abandonando este como se fossem modelos que se podem adoptar consoante as conveniências do momento. Parece-me que o sistema não pode voltar ao capitalismo produtivo e à cultura produtiva, e isto com base nas estatísticas que demonstram que 50% dos lucros das grandes empresas (as mega empresas) nos Estados Unidos e na Europa, pelo menos, provêm dos negócios financeiros. Não se trata de dois mundos, um mundo financeiro e o mundo da economia real; trata-se de um todo, um sistema produtivo financeiro integrado no interior das próprias mega empresas; não se trata, repito, de dois mundos, o mundo da economia real e o mundo da economia financeira; e esse sistema integrado está de tal forma arreigado e à volta de interesses económicos tão fortes que pensar que é possível separar um do outro é pura e simplesmente uma utopia. Creio que o fracasso de Obama e de toda a Europa e do Japão ao avançarem na desregulação financeira não é só o resultado da pusilanimidade de Obama, ainda que esta esteja presente, mas da impossibilidade de a oligarquia financeira amputar uma das suas pernas. O que não se avança quanto à desregulação financeira não é um problema de liderança politica, é o problema das mega empresas estarem tão integradas no produtivo e no financeiro que é impossível pensar que elas vão amputar uma das suas pernas, talvez tendo em conta um interesse, uma visão superior da sobrevivência do sistema; isso parece-me ser impossível, por isso me parecem utópicas estas afirmações de voltar ao capitalismo bom, ao capitalismo não de George Soros mas de Henry Ford.
Uma conclusão mais sobre a política económica é a de que o neoliberalismo fracassou, o que não é nenhuma notícia surpreendente, mas ele está vivo. E continua com toda a força, com tanta força que foi capaz de envolver as tímidas medidas keynesianas, de tal maneira que conseguiu conservar a liberalização financeira e alimentá-la com a despesa pública, ou seja, pegando na keynesiana despesa pública e convertendo-a num instrumento ao serviço da liberalização financeira; tudo isto com um discurso crítico à desregulação financeira à mistura. Até que ponto demonstrou uma grande ductilidade e capacidade de manobra esta oligarquia financeira… E impôs mais recentemente a política liberal pura e dura, isto é, a política do equilíbrio fiscal e do ajuste recessivo no caso europeu, como uma suposta fórmula anticrise. Isto coloca-nos uma interrogação, que é a de que talvez se tenha encerrado para sempre o ciclo keynesiano, ou seja, a possibilidade de haver verdadeiro keynesianismo, não o keynesianismo de mentiritas praticado por Obama de despesa pública sem uma verdadeira regulação financeira, na realidade, uma despesa pública ao serviço da sustentação das grandes entidades financeiras especulativas. Então, fechou-se a possibilidade da política keynesiana. O peso e o poder dessa oligarquia financeira totalmente integrada no produtivo e no financeiro, provavelmente chegou a um grau tal que hoje o sistema não pode fazer o que fez na década de trinta, quando esta financeirização era muito menor do que é agora; e naquela altura pode fazê-lo ajudada também pela guerra mundial, mas encerrou-se para sempre o ciclo keynesiano? Ficou Keynes como um elemento de referência académica e política para determinada época? Creio que se disséssemos isto a Krugman, ele nos responderia irritado que não, que para ele o keynesianismo tem toda a razão de ser e ele, naturalmente, continua um defensor do essencial do keynesianismo, mas numa crise de tal profundidade como esta, onde os receios de Keynes de que a economia de casino engolisse toda a economia e convertesse o sistema capitalista num sistema de apostas financeiras, numa crise destas, os receios de Keynes tornaram-se realidade, já não são receios teóricos, são a realidade; e 38 meses de crise não foram capazes de provocar um regresso ao keynesianismo. Na realidade, o que temos visto é uma utilização de certas fórmulas de Keynes, mas sempre dentro de uma matriz de conservação da financeirização.
Assim, uma conclusão mais que me parece muito importante é a de que a situação hoje é muito diferente da de 2008, a de Setembro de 2008, quando rebentou a crise. Naquele momento os Estados, os governos capitalistas tinham um arsenal de medidas anticrise que podiam, pelo menos teoricamente, ser aplicados. A crise rebentou, forte, mas temos com que enfrentá-la, temos um arsenal de medidas anticrise. Esse arsenal aplicou-se completamente ao longo destes três anos, de tal modo que hoje já não resta nada, esgotaram-se todos os recursos do arsenal anticrise. Que recursos? Diminuição das taxas de juro, que permaneceram praticamente a nível zero durante larguíssimos períodos e assim continua sem que a reanimação surja; baixa de impostos, Bush fê-la em larga escala, naturalmente uma baixa de impostos que incidiu principalmente sobre os sectores mais ricos, na pressuposição de estes sectores iriam investir estimulados pela baixa de impostos, mas não se verificou o esperado investimento; outro recurso foi injecções massivas de liquidez, o «quantitave easing» de Obama: 600 000 milhões de dólares foram injectados sem que a economia americana parecesse inteirar-se disso; e, naturalmente, o que mencionei anteriormente, os pacotes de resgate massivamente utilizados pelos Estados Unidos, pela Europa e pelo Japão. Parece que já não há mais medidas para ensaiar excepto uma, um regresso à regulação estatal pura e dura, ou seja, o keynesianismo de verdade que é o que tenho muitas dúvidas que seja possível, para além de algumas elucubrações teóricas.
Algumas palavras sobre um outro elemento, o custo social da crise. A crise cobrou um custo social: mais 300 milhões de pobres, mais cerca de 170 milhões de famintos, e mais 30 milhões de desempregados do que quando rebentou a crise; no entanto, até há alguns meses, a reacção social tinha sido mais de direita que de esquerda, era muito mais significativa a insurreição de movimentos como o Tea Party nos Estados Unidos e grupos fascistoides de extrema-direita, racistas e xenófobos na Europa, que um movimento de esquerda, de protesto social perante a crise. Nos últimos meses o quadro mudou, apareceram Os Indignados, o movimento de ocupação de Wall Street e na Europa também animou o movimento de protesto social. Embora seja impossível fazer vaticínios dá a impressão que começa a mover-se um movimento de protesto social que pode tornar-se muito importante. Isto foi importante nos anos 30, então, foi um dos factores que motivaram a mudança política económica naquela época, particularmente nos Estados Unidos com o governo de Roosevelt. É impossível dizer até onde tudo isto vai chegar, mas este movimento de ocupação de Wall Street, que é o protesto contra os grandes símbolos do sistema, pode ser um elemento politicamente muito importante, se esse movimento for capaz de traçar metas concretas, criar um certo nível de organização, escolher uma liderança pois, caso contrário, corre o risco de ser absorvido e ficar como uma coisa anedótica. Mas é por aí que se começa, e o facto de terem aparecido Indignados até em Israel é um elemento, sem dúvida, a ter em conta.
Um ponto mais quero acrescentar, que é o facto de nesta crise ter ocorrido um elemento novo: a especulação assenhorou-se não só nos lugares ou terrenos onde sempre actuou, ou seja os mercados financeiros, mas assenhorou-se também dos mercados de alimentos e matérias-primas, especialmente dos alimentos, e produzindo uma alta de preços dos alimentos; parece-me até que se ligou a especulação com qualquer coisa como uma caldeira social perigosa para o sistema, e que pode ter uma grande conexão com os indignados, indigná-los mais, e não apenas os de Wall Street, mas as grandes massas de pessoas do mundo inteiro. Os acontecimentos do Egipto e de Tunes estiveram muito ligados à alta dos preços dos alimentos, e agora no Egipto começa a ver-se que o que aparentemente tinha sido a capacidade do sistema absorver o movimento de rebelião e o domesticar parece não se ter verificado; aparece agora como não domesticado, voltaram a surgir os manifestantes, pedem mais e não se contentam com soluções de mercurocromo, como a que lhe tinha sido administrada. O sistema usou a especulação com os preços dos alimentos como uma das fórmulas de manter a taxa de lucro, mas ao fazê-lo está a dar aso a um jogo muito mais perigoso que o da especulação de títulos, de taxas de câmbio, ou com os muitos derivados financeiros que existem. Está a jogar com os preços dos alimentos, está a jogar com a fome das pessoas, e por isso parece-me que estamos na presença de uma caldeira social cuja temperatura pode subir a níveis muito perigosos para o sistema.
Neste final de 2011 observam-se na economia mundial algumas coisas curiosas, que prendem a atenção, como o facto de esta crise que leva já 38 meses de evolução estar num momento álgido e, no entanto, os lucros capitalistas não diminuíram, estão em alta, a bolha financeira não diminuiu, apesar da destruição de uma parte dela, destruiu-se uma parte mas criou-se outra, pelo que a bolha não diminuiu, até aumentou alimentada pelos pacotes de resgate que criaram a bolha do resgate, alimentada pela diminuição dos impostos e até, inclusive, pelos empréstimos da Reserva Federal; e por último observa-se que continua a crescer a desigualdade social; nos Estados Unidos é uma tendência sustentada que continua em crescimento. Quais são as perspectivas para o ano de 2012? Um possível agravamento da crise pois não se prevê, em parte alguma, uma recuperação para 2012. Se pegarmos nos grandes centros do poder económico mundial, os Estados Unidos, o crescimento deste ano deve estar entre 1 e 1,5%, não mais do que isso, isto é um crescimento que virtualmente é uma estagnação, o desemprego mantém-se à volta de 9%, a inflação continua a aumentar, os preços das casas no sector imobiliário continuam em queda e o investimento não aumenta. Esta é a situação da economia norte-americana. Na Europa estão numa situação tal que já não se trata do embate da crise económica mas da salvação da União Europeia e da salvação do euro que estão hoje a tratar. Para o Japão as perspectivas da sua economia, vítima de uma estagnação quase crónica que vem já de longa data, não são de recuperação em 2012. Quanto à China, apesar das suas enormes taxas de crescimento conseguidas durante largos anos, são as próprias autoridades chinesas que estão a colocar a necessidade de alguma desaceleração do crescimento em 2012, desaceleração que seria crescer uns sete e meio, uns 8% talvez, isto é, um enorme crescimento mas não a 10%. Isto é o que as autoridades chinesas estão a colocar, para evitar um sobre-aquecimento da economia, ou seja tratar de conter uma certa tendência inflacionista que se está a manifestar, estimulada por taxas de crescimento muito altas com alimentos importados muito caros, com petróleo importado muito caro, alguma bolha imobiliária, e um grau de incerteza quanto às exportações para os Estados Unidos e Europa, os grandes mercados de venda das exportações chinesas. Há uma grande incerteza de quanto se vai aprofundar a crise nos Estados Unidos e na Europa, e isso, naturalmente, significa que vai diminuir a exportação chinesa para esses mercados. Na China não se vai verificar uma crise em 2012, mas vai provavelmente desacelerar alguma coisa o crescimento, o que se vai somar aos problemas centrais na economia dos Estados Unidos, da Europa e do Japão.
Não é possível omitir a relação da América Latina com a crise económica global porque é uma relação muito peculiar. A América Latina vive uma situação atípica no contexto destes três anos de crise global já percorridos, e a verdade é que, enquanto há uma profunda crise nos grandes centros capitalistas, a América Latina vive uma bonança económica, naturalmente uma bonança económica dentro do seu subdesenvolvimento, dentro da dependência, mas bonança económica em termos de taxas de crescimento. A América Latina em 2010 cresceu muito perto dos 6% como média regional. No ano de 2011 deve crescer à volta de 5%, que continua a ser uma taxa muito alta. Em 2009 a América Latina sofreu o impacto da crise e teve um crescimento negativo de 1,2%, mas em 2010 e 2011 mudou radicalmente o quadro. A América Latina entre 2010 e 2011 teve uma melhoria de 13% da relação dos termos de intercâmbio. Então temos na América Latina: relativa bonança económica, uma relação de termos de intercâmbio favorável, altos preços das exportações de commodities, e no entanto os Estados Unidos e a Europa, os seus grandes centros de referência, estão em plena crise económica. Aparentemente é desconcertante, atendendo à lógica e à história. A lógica diz-nos que nas áreas dependentes, subdesenvolvidas, a crise impacta com mais força ainda que nos centros do capitalismo, e se olharmos a história foi assim nos anos trinta; a crise dos anos 30 impactou na América Latina com uma força multiplicada; em Cuba foi a crise económica que acompanhou o machadato: [1] açúcar a menos de um centavo a libra, fome generalizada na população cubana, o que se repetiu pela América Latina, a baixa dos preços das exportações, quase as mesmas commodities que se exportam hoje porque não houve uma mudança estrutural nessas exportações, as mesmas dos anos 30 são em boa medida quase as mesmas de hoje, no entanto hoje têm preços mais altos. Que explicação tem isto e que conclusões se podem tirar? Há duas explicações para a manutenção dos altos preços das commodities na América Latina: a especulação, o capital especulativo tomou os alimentos e as matérias-primas como objectos de especulação, o que não aconteceu em etapas anteriores, especulando na alta e entrando nesta especulação centenas de milhares de milhões de dólares; há informações que falam de que foram 600 000 milhões de dólares que entraram nos últimos quatro, cinco anos na especulação com commodities, contribuindo assim para aumentar os preços da soja, do cobre, da polpa de madeira, do açúcar, enfim, um variado mostruário de alimentos e matérias-primas. Esse é um factor, o segundo factor, naturalmente, é a procura na China. A China consumia 5% dos produtos básicos, das commodities que se comercializam no mundo. Hoje a China é o principal exportador mundial de alumínio, cobre, estanho, soja, cereal, e é o segundo consumidor mundial de petróleo e de açúcar, entre outras coisas. A China, e este dado é muito eloquente, no ano 2000 ocupava o 16º lugar entre os parceiros da América Latina. Hoje ocupa o segundo lugar e cresce com mais velocidade que todos os outros. Portanto, a China irrompeu como um mercado de enorme importância para a América Latina, sendo hoje o principal parceiro da Argentina, um dos principais do Perú, do Chile, do Brasil e assim sucessivamente. Por isso a procura chinesa foi um factor que contribuiu para a manutenção das exportações latino-americanas, da alta dos preços e que tem estado a actuar como um amortecedor da crise. Nalguma medida, o que a América Latina deixou de exportar para os Estados Unidos e para a Europa foi compensado com o aumento das exportações para a China e a preços elevados. Será isto o resultado de uma concertação latino-americana? Não. De modo algum. Esta situação começa a provocar uma justificação, uma certa racionalização teórica, começa a falar-se da possibilidade de um longo ciclo de 20 anos, da possibilidade de 20 anos de preços elevados das commodities; a CEPAL [2] embora ainda a coloque como uma possibilidade já introduz o conceito. Outros convertem a necessidade em virtude e dizem que é o resultado da previsão latino-americana, de a América Latina ter saneado as suas economias, de ter elevadas reservas monetárias, de ter a inflação controlada, que isto é um fruto que a América Latina está a colher pela sua boa política económica anterior. Na realidade, nem a acção especulativa do grande capital em commodities, nem a procura chinesa têm nada a ver com uma concertação latino-americana, nem com nenhuma previsão latino-americana. Quase podíamos dizer que são coisas que caíram como uma luva, no meio do azar da crise mundial.
Esta bonança tem duas características: a primeira é a sua fugacidade. A fugacidade tem a ver com o facto de a acção especulativa em commodities ser algo que está muito longe de ser um factor estável, em que se possa confiar como uma tendência a longo prazo. Este capital especulativo tão volátil pode voar para qualquer outro nicho de especulação e deixar a América Latina pendurada no pau da roupa, pelo que, eliminado esse factor, as commodities voltarão a fazer o que durante séculos fizeram, baixarem. A procura chinesa tampouco é um factor que se possa considerar eterno. Dissemos que a China, logicamente, vai avançando para um desenvolvimento tecnológico e, assim, reduzir o consumo relativo de matérias-primas, vai depender cada vez mais da sua capacidade interna de produção pelo que as importações da América Latina podem ir diminuindo com o tempo. Não pode pensar-se que a China vai continuar a importar estas quantidades de soja, para além doutro importante factor, outro importante custo, que faz parte de um importante debate latino-americano, que é a chamada reprimarização da economia latino-americana. Nos últimos anos deu-se um retrocesso na estrutura das exportações latino-americanas no sentido da reprimarização, ou seja, a América Latina está a vender à China grão de soja, minério de ferro, cobre em boa medida sem refinar, um conjunto de produtos básicos, primários, a um preço alto, mas produtos que significam uma consolidação desse padrão de exportação primária. A ideia que quero sublinhar é que esta bonança latino-americana está segura com pinças frágeis: a especulação em commodities que provoca preços elevados é instável, e a procura chinesa deve ser aproveitada para avançar numa transformação da estrutura de exportação, e num maior conteúdo tecnológico e do conhecimento das exportações latino-americanas e evitar que estas se convertam num factor de consolidação da estrutura primária, inclusive voltando mais para trás que estava a América Latina há dez anos.
O neoliberalismo também fracassou na América Latina. Fracassou tanto que na região se deu uma reacção antineoliberal e uma procura de alternativas ao neoliberalismo, em associação com movimentos sociais. No entanto, o neoliberalismo perdura na região. Conta com coisas que nenhuma outra proposta de política económica tem, uma proposta integral, uma proposta completa, abarcadora, tem uma estrutura internacional comercial e financeira; tem uma rede de Tratados de Livre Comércio. Na América Latina há mais de dez Tratados de Livre Comércio vigentes com os Estados Unidos e a Europa; e conta ainda com uma coisa tão importante como o domínio mediático.
Hoje, na América Latina, um dos grandes debates é sobre as alternativas ao neoliberalismo, alternativas que podemos perguntar-nos se estão dentro ou fora do capitalismo? As respostas são de uma gama variadíssima e vão, das propostas de um chamado capitalismo nacional, como é o caso da Argentina, um capitalismo nacional, e ver se tal coisa é possível na era da globalização actual, no que é um pouco uma volta a certos tons peronistas de há sessenta anos, até ao caso do Brasil, uma potência emergente, com um neoliberalismo mitigado; o facto de Lula ter terminado a sua governação com 80% de aceitação, é um sucesso político importante mas isso significa também uma coisa muito peculiar, quer dizer que Lula é aplaudido tanto pelos pobres como pelos ricos. É a fantasia social-democrata, a luta de classes acabou e Lula conseguiu este resultado. Também não é difícil apercebermo-nos que ocorreu em condições essenciais, incluindo a política externa praticada pelo governo de Lula, independente e muito positiva. Mas ali deu-se uma combinação peculiar, onde as estruturas neoliberais fundamentais não foram tocadas, a política económica foi neoliberal durante todo o tempo, inclusive os protagonistas individuais foram essencialmente os mesmos da política anterior no Banco Central, no ministério da Fazenda. Nem sequer se fez a reforma agrária, mas houve uma elevada receita com as exportações, devido ao alto preço das commodities que permitir à burguesia fazer excelentes negócios, mas também permitiu que várias dezenas de milhões de brasileiros saíssem da extrema pobreza, através dos programas Bolsa de Família e Fome Zero; pessoas que não comiam passaram a comer alguma coisa e são hoje entusiastas partidários do governo que, pela primeira vez, lhes deu de comer, e isto é uma coisa que tem muito a ver com a conjuntura actual da América Latina.
Para terminar, duas palavras sobre o que me parece ser uma oportunidade especial para a integração latino-americana. A integração latino-americana tem hoje, talvez, uma conjuntura especialmente favorável para avançar verdadeiramente e que é, em poucas palavras, o facto de os Estados Unidos e a Europa estarem tão enredados na sua própria crise que nenhum deles está em posição de propor à América Latina um plano sedutor de associação que arraste, como tantas outras vezes, os latino-americanos em perseguição de uma associação idílica com os Estados Unidos e a Europa. Hoje os Estados Unidos estão absorvidos com a sua própria crise, não estão em condições de poder colocar à América Latina nada que se compare com uma Aliança para o Progresso, ou mesmo com uma ALCA. A braços com a sua própria crise, os Estados Unidos só podem propor à América Latina mais do mesmo: exclusivamente TLC’s; e isso a América Latina conhece muito bem, sabe o que dá, não constitui novidade alguma. A Europa tem colocada para a América Latina uma grandiloquente proposta de Associação Estratégica Bi-regional, que mais não é do que uma rede de Tratados de Livre Comércio, mas hoje na Europa ninguém dá qualquer atenção a essa proposta. A Europa está demasiado mergulhada na sua crise, demasiado preocupada em salvar a União Europeia e o euro para pensar numa associação estratégica com a América Latina. Isto significa que os latino-americanos têm a possibilidade de avançar com a sua própria integração sem o fardo que significa combater contra propostas oriundas dos Estados Unidos ou da Europa, como tradicionalmente teve que fazer a integração latino-americana, ou seja, há a possibilidade de a integração ser pensada pelos próprios latino-americanos. Fazê-lo ou não depende de muitíssimos factores, mas se a América Latina utilizasse esta bonança económica relativa – que ninguém sabe até quando vai durar, mas pelo menos em 2012 talvez continue – e, aproveitando esta conjuntura, avançasse em termos substantivos na integração seria muito bom. Não se trata, como alguém já me perguntou uma vez, de aproveitar agora porque norte-americanos e europeus estão distraídos, não é que estejam distraídos, não é aproveitar não estarem a olhar para nós para fazer a nossa integração, pois eles estão muito atentos, o problema é que não podem fazer outra coisa. Então, é aproveitar esta bonança, esta «distração» dos Estados Unidos e da Europa para avançar. Uma direcção positiva é indubitavelmente a próxima criação da CELAC, o primeiro organismo latino-americano que reúne todos os latino-americanos sem a presença dos Estados Unidos nem de nenhum outro país extra regional.
Nota do tradutor:
[1] Refere-se à ditadura do general Gerardo Machado que tomou o poder em 1925 e caiu em 1933.
[2] CEPAL, Comissão Económica para a América Latina e o Caribe, criada em 1948 pelo Conselho Económico e Social das Nações Unidas com o objectivo de incentivar as relações económicas entre os seus membros.
* Economista e Professor universitário cubano, Osvaldo Martinez é Deputado na Assembleia Nacional do Poder Popular, Director do Centro de Investigação de Economia Mundial e presidente da Comissão de Assuntos Económicos da Assembleia Nacional do Poder Popular
Este é o texto de uma conferência proferida pelo autor no Centro de Investigações da Economia Mundial, publicado originalmente em Cubadebate a 4 de janeiro de 2012 em:
http://cuba.cubadebate.cu/opinion/2012/01/04/crisis-economica-global-tres-anos-de-recorrido/
Tradução de José Paulo Gascão
Nenhum comentário:
Postar um comentário