sábado, 22 de agosto de 2009

[Carta O BERRO] 30 anos de Anistia por Uraruano Mota

DIRETO DA REDAÇÃO

Recife (PE) - No próximo sábado 22 de agosto, comemoram-se os 30 anos da anistia no Brasil. Por isso recupero aqui algumas impressões da leitura de um livro fundamental, “Direito à memória e à verdade”, editado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

O livro “Direito à memória e à verdade” é um livro grande, com 500 páginas, nas dimensões de 23 x 30 centímetros. Por suas dimensões físicas, é um livro que somente comporta ser conduzido como um escudo, como um símbolo de orgulho, para ser ostentado nas praças e nos ônibus. Mas o que mesmo exibe e informa tal volume?

De um ponto de vista frio, o livro é como uma recondução a um mundo que se rebela contra a mediocridade, contra tudo o que for mesquinho e pequeno. Em suas páginas amarelas, quem lê suas letras lê o destino de homens. Quem lê as suas linhas lê a luta de uma geração. E, coisa mais interessante, este é um livro sem autor. Melhor, é um livro de autores, de muitos autores, um registro de vidas reunidas como em uma coleção de prontuários de polícia. Os seus perfis saem das páginas dos processos, e poucas vezes se viram processos tão antiprocessos. São homens e mulheres, são jovens e quase-crianças, são velhos, malditos e amaldiçoados pela dor na consciência. São renegados que se matam. São homens tornados seres desequilibrados, são gente, enfim, em condições-limite.



“Maria Auxiliadora Lara Barcellos (1945-1976)

Maria das Dores atirou-se nos trilhos de um trem na estação de metrô Charlottenburg, em Berlim... tinha sido presa 7 anos antes, Nunca mais conseguiu se recuperar plenamente das profundas marcas psíquicas deixadas pelas sevícias e violências de todo tipo a que foi submetida. Durante o exílio registrou num texto... ‘Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, de grito no escuro’....



Nilda Carvalho Cunha (1954-1971)

Sua prisão é confirmada no relatório da Operação Pajuçara, desencadeada para capturar ou eliminar Lamarca e seu grupo. Foi liberada no início de novembro, profundamente debilitada em conseqüência das torturas sofridas e morreu no dia 14 de novembro, com sintomas de cegueira e asfixia. Nilda tinha acabado de completar 17 anos quando foi presa... ‘Você já ouviu falar de Fleury? Nilda empalideceu, perdia o controle diante daquele homem corpuloso. – Olha, minha filha, você vai cantar na minha mão, porque passarinhos mais velhos já cantaram. – Mas eu não sei quem é o senhor. – Eu matei Marighella. Vou acabar com essa sua beleza- e alisava o rosto dela....



Odijas Carvalho de Souza (1945-1971)

Odijas foi levado para o Hospital da Polícia Militar de Pernambuco em estado de coma, morrendo dois dias depois, aos 25 anos... ‘No dia 30 de janeiro de 1971 fui acordado cedo por uma grande movimentação. Por volta das 7 horas, Odijas passou diante da cela, conduzido por policiais. Apesar da existência da porta de madeira isolando a sala do corredor, chegaram até nós os gritos de Odijas, os ruídos das pancadas e das perguntas cada vez mais histéricas dos torturadores. Durante esse período, Odijas foi trazido algumas vezes até o banheiro, colocado sob o chuveiro para em seguida retornar ao suplício. Em uma dessas vezes ele chegou até a minha cela e pediu-me uma calça emprestada, porque a parte posterior de suas coxas estava em carne viva. Os torturadores animalizados se excitavam ainda mais, redobrando os golpes exatamente ali”.



Como vêem, difícil é manter a serenidade, a frieza, um ar apolíneo, razoável, sensato, diante desse mundo que se encontra submerso, mas jamais superado, morto, vencido. Eu, que não sabia como começar, confesso que também não sei como pôr fim a estas linhas. Eu havia escrito antes notas, reflexões, coisas digamos mais sociológicas, dignas de tese, que iludem toda a gente, que pode nos tomar como um ser culto, inteligente, sábio, espirituoso. Basta de falsidade, porque

“ – Teu nome completo é Mário Alves de Souza Vieira?

- Vocês já sabem.

- Você é o secretário-geral do comitê central do PCBR?

- Vocês já sabem.

- Será que você vai dar uma de herói? ...



Horas de espancamentos com cassetetes de borracha, pau-de-arara, choques elétricos, afogamentos. Mário recusou dar a mínima informação e, naquela vivência da agonia, ainda extravasou o temperamento através de respostas desafiadoras e sarcásticas. Impotentes para quebrar a vontade de um homem de físico débil, os algozes o empalaram usando um cassetete de madeira com estrias de aço. A perfuração dos intestinos e, provavelmente, da úlcera duodenal, que suportava há anos, deve ter provocado hemorragia interna”.

É terrível que a importância de um livro, que a importância da palavra escrita, se dê em relatos tão cruéis. Mas a realidade não se escolhe. Quem toca nesse livro, toca em destinos.

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