Uma história do recalque sexual cristão
Sacralizando o casal, os evangelhos celebram a sexualidade como rito íntimo. O pensamento agostiniano e o monaquismo ocidental vão em seguida reduzir o sexo ao “pecado da carne”. Uma educação culpabilizante que marcará gerações de católicos.
Essa é a opinião de Elisabeth Dufourq, doutora em ciências políticas da França, em entrevista a Jennifer Schwarz, publicada na revista Le Monde des Religions, 02-07-2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis a entrevista.
O que nos dizem os evangelhos sobre a questão da sexualidade?
Jesus realiza seu primeiro milagre por ocasião de um casamento (Jo 2). As bodas de Caná são uma festa em que o vinho da felicidade deve correr em abundância. A humanidade do evangelho é sexuada e feliz de o ser. Mas, o casamento é uma festa quem implica um casamento duradouro, ainda mais definitivo do que na tradição judaica (Mt 19,4). Jesus considera o casal como gerador da humanidade (Gn l: “Homem e mulher Ele os fez... e os dois serão uma só carne.”). Por isso ele ultrapassa a Lei que admite o repúdio e denuncia principalmente a “dureza do coração” daquele ou daquela que abandona. Esta firmeza de princípio contrasta com a compaixão com a qual ele trata as mulheres esmagadas pelo rigor de uma lei sempre interpretada pelo homem. Por exemplo: Jesus salva a vida de uma mulher adúltera, arrastada para fora da cidade para ser apedrejada: “Quem jamais pecou atire a primeira pedra” (Jo 8). Implicitamente, ele recoloca o problema da falta sexual numa perspectiva de justiça. Se existe uma mulher adúltera, então houve também um homem... Ele também não condena a mulher samaritana (Jo 4) que teve cinco maridos e vive com um sexto. E é precisamente a ela que ele revela por primeira vez que ele é o Messias. Isso é ao mesmo tempo uma celebração da ternura e uma homenagem feita à mulher desprezada.
Os evangelhos evocam a questão da sexualidade de maneira mais direta?
Por pudor, o Cristo compara o Reino dos céus a um festim de núpcias, mas ele jamais fala do como da sexualidade. Ele jamais diz o que deveria ou não deveria se passar no leito dos esposos. Nos evangelhos, tudo o que é um dom gratuito deve permanecer em segredo (Mt 6): a esmola, o jejum, a prece. Um dos raros teólogos medievais que não será obsedado pelo pecado sexual, Rupert de Deutz, compara a união dos corpos à prece que se deve fazer em segredo. A sexualidade é um rito. O casal constituído é sagrado. O vizinho deve respeitá-lo, mesmo em pensamento (Mt 5, 27-28). A fortiori o homem de Deus.
Jamais falar do como da sexualidade não é uma maneira de negá-la?
Não. Mesmo Ovídio diz, na Arte de amar, que, para resguardar sua dignidade, o rito do herói devia permanecer secreto. Que o Cristo jamais fale do como da sexualidade, não é negá-la, mas humanizá-la. O amor de que falam os evangelhos engloba o Eros (o prazer de amar), mas ele o transcende com frequência em Ágape (o amor pelo outro). As bem-aventuranças (Mt 5, Lc 6) falam de felicidade, de justiça, de caridade, e não de êxtase amoroso.
São Paulo vai desempenhar um papel importante no recalque da sexualidade?
Em longo prazo, é preciso distinguir a mensagem de Paulo e sua instrumentalização. Em sua época, o porto de Corinto contava mais 10.000 prostitutas. Nos ambientes judeus helenizados, ousar-se-ia dizer “platonizados”, ao invés, a influência estóica era forte, em reação ao erotismo ambiental e desenfreado. Nesse contexto, são Paulo tem por missão implantar duradouramente comunidades na Grécia e em Roma. Ele é, pois, muito cioso por decência; os fiéis devem renunciar à fornicação, ao incesto, aos escândalos (1 Cor 5). O responsável por uma comunidade deve ser “marido de uma só mulher” (Tt 1, 6). Em termos de moral conjugal, enfim, quando Paulo escreve “Mulheres, sede submissas aos vossos maridos”, ele não escreve nada de novo no Mediterrâneo de seu tempo. Mas, quando ele diz: “Maridos, amai vossas mulheres como o Cristo amou sua igreja” (Ef 5, 22-23), ele fala de um engajamento místico realmente novo que, em seguida, será pervertido. Durante séculos e até o Código de Napoleão, o homem utilizará como um maná a fórmula paulina: “O marido é o chefe da mulher, como o Cristo é o chefe da Igreja” (Ef 5, 23).
Mais tarde, a recepção desta mensagem se dará diversamente no Império cristão do Oriente e do Ocidente...
Após a paz constantiniana (IV século), os costumes do Oriente e do Ocidente, bem cedo invadidos pelos bárbaros, se dissociam culturalmente. Muitos bispos do Oriente são casados e filhos de bispos. Eles respeitam suas mães, seus filhos e suas esposas. Porém, conceitualmente, eles admiram a virgindade porque, como bons discípulos de Platão e de Aristóteles, eles são escandalizados pelo ciclo da geração e da corrupção. Com que rima um mundo feito para se gerar e depois morrer, se gerar novamente e depois ainda morrer? Isso é um absurdo para os Padres gregos. Gregório de Nissa, embora casado, reconhece, sem o adotar, que a melhor solução seria a de permanecer virgem. Mas, com humor, ele julga suspeitos aqueles que falam dos esplendores da virgindade com estranha obstinação. Os Padres filósofos são felizes em família, mas eles gostariam que o essencial da vida consistisse em elevar-se acima do terrestre moral, até a pureza dos anjos. Um escrito apócrifo de fins do século quinto, atribuído a Dionísio Areopagita, descreve assim as ascensões até Deus da alma purificada. Sua influência sobre a Idade Média oriental e ocidental será considerável. Em sua pureza de intenção, ele permite compreender a espiritualidade do monge.
No Ocidente é a influência de Santo Agostinho que vai desempenhar um papel determinante. Qual foi sua especificidade?
Africano de origem, numa época em que a implantação do cristianismo é forte na África romana, Agostinho somente se converte tardiamente, após ter conduzido exitosamente uma carreira de retórico que o conduzirá a Milão, então capital do império do Ocidente. Desde seus anos de estudos em Cartago, ele guarda a lembrança de uma vida de devassidão, levada até o desgosto e à rejeição das mulheres. Compartilhada entre sua admiração por sua mãe, santa Mônica, e seu apego a uma companheira que participará de sua vida durante quatorze anos e lhe dará um filho – mas do qual ele nem sequer cita o nome -, ele também fica fascinado e ao mesmo tempo horrorizado pelo maniqueísmo, do qual ele só se livrou na idade de 28 anos; o homem, admitiu ele por longo tempo, não domina as forças do bem e do mal. Desde o pecado original, pensa ele, num contexto de invasão bárbara, a humanidade está em perigo de condenação iminente. A mulher é a causa, já que Eva colheu a maçã por primeiro. Uma vez que o Cristo jamais fala do pecado de Eva, Agostinho inscreve este pecado quase geneticamente na natureza humana e, mais gravemente, na natureza da mulher. Esta certeza, ancorada no pensamento medieval, será dogmatizada por uma longa série de teólogos, desde santo Anselmo, no século doze, até são Tomás que, no século treze, reforçará este preconceito pela doutrina da lei natural, sobre a qual os teólogos cristãos não terão nenhuma dificuldade em estar de acordo com os do islã, já que uns e os outros, todos masculinos, se referirão ao segundo relato do Gênesis.
A influência intelectual de Agostinho vai, então, marca o Ocidente de maneira indelével?
Santo Agostinho escreveu imensamente, num belíssimo latim. Sua obra será minuciosamente recolhida e mais tarde recopiada pelos monges beneditinos. É assim que sua influência se estenderá sobre toda a era do primeiro monaquismo beneditino, até a virada dos séculos nono e décimo, no momento da reforma que triunfa na abadia beneditina de Cluny.
Qual sua relação com a sexualidade?
Malgrado as advertências conciliares, o clero da primeira Idade Média ocidental está longe de ter o desapego dos anjos. No momento das invasões normandas e dos assaltos sarracenos, numerosos bispos casados são capitães de guerra, defensores armados de suas cidades. Transmitidos aos seus filhos, seus bispados se tornam feudos hereditários e militares. A própria Roma está nas mãos de papas mais ou menos guerreiros, submetidos à influência de suas amantes ou de suas mães. É em reação a isso que triunfa a reforma de Cluny. A obra de Cluny será imensa, porém ao preço do sacrifício da mulher. Casto, o monge beneditino não o é sempre em pensamento, já que ele encara a mulher com horror e fascinação. Um século mais tarde, a reforma cisterciense se apresenta ainda mais radical. Os escritos sobre as mulheres, não somente misóginos, porém mórbidos, traduzem à evidência as frustrações dos monges que reprimem sua sexualidade. Malgrado isso, o sucesso das ordens monásticas é tal que no século onze o papa Gregório VII decide organizar a igreja ocidental como um grande mosteiro. Dali em diante, bispos e curas costumam rejeitar suas esposas e viver comunidade. Esta reforma levará décadas e séculos para se impor.
Em fins do século XII, por uma espécie de sublimação, a imagem da Virgem aparece...
Sim. Atingimos a época das cruzadas. Paradoxalmente, são Bernardo, o grande reformador cisterciense, que se insurge contra o laxismo dos padres, é também o gênio que inventa uma prece de ternura: a Ave Maria. No meio dos clérigos que desvalorizam a mulher de todos os dias, o ideal feminino é nela sublimado. Enquanto no Oriente ortodoxo, a Virgem representa a humanidade inteira conduzindo Deus, a Theótokos, no Ocidente nasce e adquire seu destaque a imagem da “Imaculada Conceição”, acolhedora porém nascida diferente de todas as outras mulheres. Rapidamente a igreja institucional se identifica com a Virgem Maria, mãe de Deus, mãe do Cristo, mãe do povo, coroada nos pórticos das catedrais. Na tradição católica esta concepção durará até sua dogmatização em meados do século vinte. Na tradição reformada, Lutero denunciará um risco de idolatria mariana, sem refutar a virgindade do coração que permite acolher o milagre de um Deus encarnado.
Chegamos aos momentos trágicos que seguem a peste negra, as misérias da guerra de Cem anos, o avanço inexorável do islã e depois a queda de Constantinopla. Uma neurose coletiva parece tomar conta de certos clérigos, que tomam as mulheres por alvos de seus ódios. Por quê?
Muitos clérigos vivem então em círculos universitários cada vez mais fechados e fundamentalistas. O que está fora da norma deve ser erradicado. A Inquisição, implantada no século XIII para lutar contra as heresias encara com horror os saberes das mulheres. A mesma se baseia numa idéia da razão, haurida de uma péssima transmissão das categorias de Aristóteles. Já há séculos os homens temiam as sábias-mulheres, herboristas capazes de transmitir por via oral os segredos de filtros de amor ou de esterilidade. Os lugares de transmissão feminina, os lavatórios, as árvores mágicas, os lugares de parto, eram tabus para o homem. Somente os confessores obtinham eco de seus segredos herdados de antigos saberes romanos ou pré-históricos. Crendo cristianizar os campos, eles os condenavam como superstições e, a partir do século XIV os próprios papas acreditam na fábula dos sábados de bruxas. Formam-se, então, experts em demonologia, inexoravelmente lógicos a partir de postulados absurdos. Sabe-se que devastações provocaram esses ódios – cuja perversão sexual é por vezes evidente – e que número assustador de fogueiras foram armadas em todas as confissões cristãs – católicas, ortodoxas e reformadas – e isso até meados do século dezoito!
Pai da reforma protestante, Lutero é considerado como um emancipador. Não obstante, o luteranismo parece por vezes mais severo do que o catolicismo; pode explicar esta contradição aparente? Em sua origem, Lutero é um monge agostiniano obsedado pela idéia do inferno. Ele não crê no purgatório, essa espécie de “sessão de recuperação” que, graças à indulgência divina, permite esperar um acesso diferido ao Paraíso, após anos de purificação. Amoedando os anos de indulgência de maneira odiosa, o papado de seu tempo arruinou esta idéia de justiça misericordiosa. Tornado emancipador dos crédulos, Lutero, uma vez casado, se encontra suplantado pela amplitude da revolução que ele desencadeou. Calvino, por sua vez, organiza a reforma genebrina de maneira muito rigorista, em torno do conceito agostiniano de predestinação das almas ao inferno.
E no século XVII?
Na confissão católica, uma corrente jansenista, rigorista e amplamente burguesa cultiva também a angústia da predestinação. Um século mais tarde, este movimento adquire amplitude em pleno período das Luzes e de uma libertinagem na qual as crianças abandonadas pagam as custas aos milhares. Entre esses extremos, o próprio Voltaire o admite, o cura de campanha desempenha com muita frequência o papel de moderador. É ele que preside os batismos e os ritos de remissão [relevailles] das mulheres. Embora o segredo de confissão não seja traído, tudo nos diz que ele conhecia os sofrimentos das mulheres rasgadas em partos, daquelas que enterram um feto nos campos ou que, na cidade, abandonam seus bebês nos degraus das igrejas. Os registros paroquiais mostram que dessa época datam os primeiros sintomas de espaçamento voluntário dos nascimentos. Esse modus vivendi parece ter se mantido de qualquer jeito em muitas regiões rurais até meados do século vinte, e isso malgrado o respeito de muito bom grado prestado pela igreja às famílias numerosas que lhe davam mais filhos como sacerdotes ou religiosas.
E depois?
Hoje em dia se mensura mal até que ponto as mulheres do século dezenove, e mesmo de inícios do século vinte, foram esmagadas por uma educação culpabilizante que ultrapassava em muito o domínio da sexualidade. Sem mesmo evocar o “pecado da carne”, tão assustador que eles se calam e se resguardam de citar a Bíblia que fala dele, os missais para uso das mulheres não cessam de dizer que comungar em estado de pecado é assinar sua condenação eterna. Os maridos se defendem pela incredulidade e infidelidade, mas, pelo menos no ambiente burguês, as mulheres tem poucas escapatórias. A abnegação e o sacrifício são apresentados como florões de suas virtudes “naturais”.
A revolução da sexualidade no coração dos casais de tradição cristã não veio da igreja, mas da medicina. Ela data da descoberta do ciclo hormonal feminino, nos anos 1930 e depois, em 1955, da síntese química dos hormônios permitindo à mulher escapar do elo inexorável entre a união dos corpos e a fecundação de um óvulo. Por temor de que ela não controle e por vezes não entenda, a igreja católica, diversamente das igrejas reformadas, se engaja então numa via que autoriza a dissociação entre a sexualidade e a procriação, mas na condição de empregar métodos decretados como naturais... e de uma ineficácia notória. Duas décadas após a Humanae Vitae, publicada em julho de 1968, a maioria dos casais católicos já haviam feito sua escolha. Eles haviam abandonado o médico das almas para consultar o médico dos corpos e, se fosse preciso, o psicanalista. Esta mudança foi capital para a igreja, que perdeu a antiga proximidade que ela mantinha com as famílias. O erro da Humanae Vitae foi, me parece, o de haver tentado introduzir um Diafragma nos milhões de quartos de esposos. A atitude cristã é antes a de sacralizar o casal, responsabilizando-o.
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